A lã e a neve são brancas. Trazem no seu dizer o calor e o frio. Penso num inverno que ferve e num inferno branco. Vejo a comunicação entre estas duas formas de branco como vejo os irmãos gémeos, quase evidente, quase impenetrável.
Este trabalho é sobre a beleza da comunicação. Tomo os gémeos e a curiosidade que os envolve como fonte de pesquisa. Os irmãos amam-se, comparam-se e temem-se muito. Os gémeos estão ligados de um outro modo. A perceção do outro, os segredos da proximidade, ser o outro e nós mesmos num contacto; o espaço do outro que entra no nosso tempo, a antecipação, a telepatia, o encontro – Eis os eixos que nos levaram a descobrir gémeos de várias idades que vivem em aldeias da região de Guimarães e numa grande cidade como Lisboa. Fazê-los aproximar-se a propósito de um objeto de dança, música e silêncios que se constrói com eles e com artistas.
A Lã e a Neve é um espetáculo que procura nos corpos dos seus intérpretes a força para sair e rebentar com os limites da comunicação. Iremos certamente escorregar na neve e enlearmo-nos na lã que os tecelões, antigos pastores do norte interior das nossas montanhas, já não tecem.
Queremos saber do sabor da lã. Queremos queimar as mãos com o ardor da neve. A lã e a neve, palavras irmãs, quase iguais, quase distantes.
Madalena Victorino · Porto, 7 de junho, 2012
Queremos neve e queremos lã
Em A Lã e a Neve dominam tons brancos – branco-quente e branco glaciar – que unem, com essa característica elementar, componentes distintos que simbolizam uma perspectiva de Madalena Victorino sobre a humanidade, como visto em trabalhos anteriores: a relação estreita entre a natureza (livre, selvagem e auto-organizada), e a cultura, acção humana organizadora, vulgarmente falhada no reconhecimento das matérias que a originam (dos animais aos minerais e mistérios vários que os regulam) e na valorização das práticas tradicionais, mais próximas do planeta que é a casa de todos.
Pressente-se uma coreografia que trabalha a mesma essência – acções das comunicações humanas, como agarrar, suportar, empurrar ou brincar – de várias maneiras: o desenho espacial, o ritmo, a forma e a distribuição quase uníssona de sequências é muito clara por momentos, mas noutros, sendo ainda estruturante, dilui-se em contorção, espasmo e enleio de corpos numa massa orgânica mais imprevisível. Porém, esta dupla configuração, que surge também na dramaturgia, não tem fronteiras definidas.
Victorino cria o discurso teatral a partir da ideia de união, elegendo como fonte inspiradora a relação entre gémeos. Há diversas analogias possíveis, caso se opte por uma observação interpretativa, nem sempre fácil pois há muita informação acumulada. Mas estão lá momentos muito belos que visualizam o amor fraternal, onde a dependência (equilíbrios e cumplicidades) e a disputa (quezílias pela vitória ou pelo controlo) se sobrepõem continuamente. Uma observação contemplativa é efi caz na segunda parte do espectáculo, povoada de lençóis sacudidos, atirados ao ar, estendidos e rodados, trazidos por criaturas do gelo, quais sereias da neve, que celebram a força da natureza glaciar ameaçada.
A presença dos músicos no palco – Carlos Bica (contrabaixo) e João Paulo Esteves da Silva (piano) – oferece um precioso concerto ao qual vale a pena dar tempos de atenção exclusiva, reparando como da construção prévia da partitura se desenlaça um diálogo cúmplice e improvisado, sintonizado com o movimento e as imagens dos bailarinos.
O programa de artes performativas da Capital da Cultura Guimarães 2012 apostou numa sucessão singular de co-produções de dança contemporânea, com criadores portugueses que, depois de convocar à cidade Filipa Francisco, Vítor Hugo Pontes, Francisco Camacho, Rui Horta ou Paulo Ribeiro, conclui com uma peça muito bonita de Madalena Victorino, acompanhada por um elenco coeso e tocante, de crianças jovens e adultos, com cinco pares de gémeos.
Ela é perfeita para a época, já que a sua invocação do frio provoca empatia a quem assiste no conforto de roupas quentes e salas aquecidas. Faz-nos reflectir: que vamos fazer quando já não houver lã nem neve? Quando não houver o outro que é parte de nós?
Paula Varanda, in jornal Público de 2 de dezembro de 2012 ★★★★
Wool and snow are white, expressing heat and cold. The communication between them resembles twin brothers, almost evident, almost impenetrable. This work is about the beauty of communication. Twins love, compare and fear one another, but are also connected in another way. The perception of the other, the secrets of proximity, being ourselves and the other in a moment of contact, anticipation, telepathy – these were the axes for our show that searches in the bodies of dancers for the strength to transcend communication. Wool and snow, twin words, almost equal, almost distant.
Madalena Victorino