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2013


MÚSICA
Adriana Calcanhotto solo
Olhos de onda
destaque
© Daryan Dornelles
SEX 12, DOM 14 DE ABRIL
Grande Auditório
21h30 · Duração: 1h30
18€ · Até aos 30 anos: 5€
M3
Informações
21 790 51 55
culturgest.bilheteira@cgd.pt
apoio
Voz e violão Adriana Calcanhotto

Adoro o palco da Culturgest. Nunca vou esquecer do meu primeiro concerto em Lisboa, sozinha com minha guitarra e uma audiência mágica, em Outubro de 2000. Na primeira noite caí de amores pela cidade, e por Portugal, dentro dela. Naquela noite fiz amigos queridos e é tudo nítido e intocado na minha memória, em geral bem turva. Naquela noite entrei em Portugal, ou Portugal entrou em mim, vá lá, para sempre, a porta de entrada sendo o convite da Culturgest, por António Pinto Ribeiro. Lembro que no camarim, em um carrinho, haviam garrafas de guaraná do Brasil sem que ninguém houvesse pedido e aquilo me comoveu logo antes de entrar em cena. Lembro também de sentir mais frio do que imaginava. Lembro sobretudo do frio na barriga antes de entrar no palco, que de algum jeito dura até hoje.

 

De modo que quando recebi o convite para me apresentar no mesmo formato solo, nas comemorações de vinte anos da casa, disse sim na mesma hora. Não tinha um concerto preparado, não tocava há muito, não saberia se conseguiria e até aqui, sinceramente, não sei, mas por isso mesmo. Andava doida para retomar a guitarra, portanto para inventar um roteiro pensado para Portugal, para pegar a estrada, pela janela do quarto, pela janela do carro, trancafiada em quartos de hotel enquanto Portugal está lá fora, tocando compulsivamente para que o concerto seja lindo e inesquecível como só em Portugal pode ser, enfim, o novo convite da Culturgest era tudo o que mais eu podia querer no momento em que ele chegou. Depois pegar a estrada seca, com Diogo ao volante, comer doces de ovos em Aveiro, partir atrás de baleias açoreanas, ir ao Fado e acordar inchada na manhã seguinte para dar entrevistas sem parar, me emocionar cantando meus poetas amados para as pessoas, pensando bem, o que mais alguém poderia querer?

 

Tomar e retomar a guitarra é uma constante na minha trajetória, aliás, desde que me apaixonei pelo instrumento, criança ainda. Uma das minhas memórias mais antigas, na casa da minha avó, é uma guitarra que havia lá e que me fascinava embora parecesse (e fosse realmente) um objeto enorme, impossível para mãozinhas. Nas memórias mais antigas, em que as pessoas são gigantes e as casas grandes feito palácios, aquela guitarra era monumental, mas lembro bem das minhas primas achando engraçado o meu deslumbramento e me alcançando o guitarrão para fazer algum barulho, coitadas. Sempre convivi com instrumentos os mais diversos porque os ensaios dos conjuntos onde meu pai tocava eram na garagem da nossa casa. Meu padrinho, Leo Belloni, era guitarrista, tocava com meu pai (baterista) e me deu toques básicos fundamentais da guitarra e de como conviver com ela, contaminado que era pelo micróbio do samba. Ele morreu cedo e não pude conviver e aprender mais, mas acredito que tenha sido responsável por desmistificar o necessário para que eu me aventurasse, em vez de escolher qualquer outro instrumento. Certamente foi ele quem orientou a minha (outra) avó na escolha da guitarra presente de aniversário de seis anos e que eu não esperava. Daí, professores e ídolos foram sendo assimilados sem que nunca eu chegasse a ter experimentado a sensação de entender como funciona o mecanismo do temperamental instrumento. Hoje ele prossegue misterioso e intransponível para mim, mas adquiri intimidade com esse mistério, digamos assim. Fiz turnês solo, pela Europa, toquei na África, no jardim das esculturas do MoMA, no complexo do Alemão no Rio, em salas antigas, em salas míticas, em ginásios, em espeluncas. Foi sempre assim, tomando e retomando, que convivemos, o instrumento fora de moda no Brasil, e eu.

 

A retomada desta vez deve-se ao fato de que precisei parar de tocar, o abandono desta vez foi obrigatório, por conta de uma lesão chatinha na mão direita. Exatos um ano e seis meses sem poder tocar sendo que no justo momento em que deveria sair em turnê com O micróbio do samba, punhado de canções que compus e gravei, adivinhem, na guitarra. O óbvio, que seria então não fazer os concertos do álbum, acabei não conseguindo, já que não tive coragem de cancelar os três concertos portugueses agendados e eles acabaram gerando o Micróbio vivo e o resto é lenda.

 

No mais, como sempre digo, no meu ofício quem comanda são as canções, e não me debato com isso. Gosto, aliás, de ser levada por elas. Então nunca tenho a menor pretensão de ser coerente com um alinhamento adiantado, adiantando que ando tocando aquelas das quais estava com muitas saudades, algumas das quais havia até esquecido, algumas do micróbio do samba, algumas das quais tenho inveja porque gostava de as ter escrito, algumas que escrevi mas foram gravadas por outros artistas, poemas que musiquei, e alguma coisa nova que ninguém é de ferro. Olhos de onda, por exemplo, que batiza o alinhamento, qualquer que ele seja, fiz enquanto ensaiava. Além de inaugurar nova safra, o que sempre é motivo de alegria, a canção ajudou a dar o norte do recital. Constatei quando essa canção nasceu que as outras já estavam também falando do que ela fala e da língua portuguesa e do mar da língua e por aí vai.

 

De tudo um pouquinho, como a receita da felicidade, deixando sempre aberto o espaço para poetas que me apareçam e para novas canções que podem sempre me arrebatar mais perto da hora ou que podem ser escritas no camarim, sacrificando para isso certezas absolutas no repertório, tudo é possível, graças aos deuses.

 

Aqui estamos, eu, a guitarra e algumas canções que adoro, nos reencontrando, como se fosse a primeira vez, nos encontrando pela primeira vez quando é o caso, desejando viver mais uma noite "daquelas", no palco querido da Culturgest, antes de por o pé na estrada, enfim. Importante é que aquele frio na barriga antes de entrar no palco sozinha com minha guitarra, permanece, se não aumentou e foi para isso que vim.

 

Adriana Calcanhotto

I love the stage at Culturgest. I’ll never forget my first Lisbon concert in October 2000, where I was alone with my guitar and a magical audience. That first night I fell in love with the city, making some dear friends. I entered into Portugal, or Portugal entered into me, forever, through the door opened by António Pinto Ribeiro’s invitation. When I received this fresh invitation to perform a similar concert, I didn’t hesitate, hoping to relive another night like the first one. Just me, my guitar and some of the songs that I love. I still feel the same sense of excitement.

Adriana Calcanhotto