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2016


JAZZ
Eric Revis Trio
Ciclo "Isto é Jazz?" · Comissário: Pedro Costa
destaque
© Emra Islek (pormenor)VER IMAGEM
TER 15 DE MARÇO
Pequeno Auditório
21h30 · Duração: 1h
5€ (preço único)
M6
Informações
Bilheteira Culturgest
21 790 51 55
culturgest.bilheteira@cgd.pt
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Contrabaixo Eric Revis Piano Kris Davis Bateria John Betsch

Eric Revis é reconhecido, acima de tudo, como um contrabaixista de estilo único, com um som de madeira enorme, espesso e que consegue ser tão melódico quanto percussivo, swingando sempre, seja qual for o contexto. E este são vários, pois o músico norte-americano percorre com igual desenvoltura os circuitos do mainstream e da vanguarda. A sua personalidade manteve-se sempre, fosse com Betty Carter, Lionel Hampton e McCoy Tyner ou com Peter Brotzmann, Steve Coleman e Branford Marsalis. Mas é também um compositor de créditos firmados e um líder com conceitos e critérios bem definidos. O seu trio revela-o bem. Ou os seus trios: aquele que reuniu um veterano do free, Andrew Cyrille, e um valor emergente, mas já amplamente aceite, do "novo jazz", Kris Davis, e a nova versão que agora junta esta a John Betsch, outro baterista consagrado.

A música proposta pelo grupo é afirmativa na sua identidade e clara na coesão conseguida, mas denota a variedade de interesses e influências de Revis e dos seus pares. Fica mesmo explicado que no alinhamento dos temas – não variando este muito do novo álbum com selo Clean Feed a apresentar neste concerto, e do anterior City of Asylum, ainda com Cyrille – se repesquem partituras de autores tão apartados no tempo como na estética, como Thelonious Monk e Keith Jarrett. Groove, subtileza e energia coexistem como é raro acontecer, não deixando ninguém indiferente.

American double-bass player Eric Revis has a unique style, with a thick wooden sound that is simultaneously melodic and percussive, always swinging whatever the context – mainstream or avant-garde. He is also a highly regarded composer with clearly defined concepts and criteria, as all his trios have shown. Here, he will be performing with Kris Davis and John Betsch, playing affirmative and clearly cohesive music that denotes the trio's range of interests and influences, reviving scores by such aesthetically different composers as Thelonious Monk and Keith Jarrett. Hard to remain indifferent.

Regresso ao futuro

 

A primeira referência que nos vem à ideia ao ler ou ouvir o nome de Eric Revis é o facto de o contrabaixista pertencer ao quarteto de Branford Marsalis há nada menos do que 17 anos. A reação de quem dele conheça pouco mais do que esse dado biográfico é para o definir como alguém que vem procurando dar frescura ao jazz mainstream – de resto, em acordo de vontades com o líder saxofonista. Entrar no mundo de Revis é, no entanto, perceber que estamos perante um caso singular. Outros músicos existem em semelhantes circunstâncias, mas a sua singularidade está em apresentar essa condição como o fator chave da sua atitude face à arte dos sons: acontece que o mesmo músico que também integra o Kurt Rosenwinkel Trio (figura que, como ele, frequenta as autoestradas do jazz mas também os caminhos de terra do género, com o grupo Human Feel) toca igualmente em trio com Peter Brotzmann e Nasheet Waits, bem como, na banda Parallax, com Ken Vandermark e outro jazzman transversal aos estilos, Jason Moran. Ou seja, é em paralelo um dos protagonistas da cena de vanguarda dos Estados Unidos.

Acontece que Revis se rege por um conceito que anula as argumentações da polémica mainstream-vanguarda, designando-o com o título geral de uma popular série de filmes, Back to the Future. Este "regresso-ao-futuro" tem um enunciado muito simples («quanto mais longe recuo, mais "moderna" a minha música se torna»), mas enormes implicações musicológicas e até estéticas. O também compositor acredita que a tradição do jazz encerra em si as pistas para a invenção do jazz do futuro, pelo que é no património histórico que vai buscar os fundamentos das ideias inovadoras que aplica em qualquer dos contextos em que se move, sejam os tradicionalistas (não tanto assim, em consequência) ou os mais experimentais (menos tentativos estes porque sustentados no que antes se fez).

Por palavras suas: «É uma infelicidade haver tantos músicos com uma mentalidade exclusivista. Muitos fatores poderão explicar isso, mas regra geral deve-se essa compartimentação à relutância das pessoas em desenvolverem o trabalho necessário não só para tocar, mas também para apreciarem verdadeiramente o que consideram ser "diferente". O ser humano tende a não saber do que gosta… Ou melhor, gosta do que já conhece. Quando cheguei à música, foi com o princípio de não me submeter a uma hierarquia estilística. Sempre tive a tendência para mergulhar nos mecanismos das coisas que acho interessantes. Ao fazê-lo, tornou-se-me evidente que há certas qualidades universais em todas as músicas.»

Eric Revis não seguiu o aceso debate entre Wynton Marsalis e Anthony Braxton que definiu as posições do jazz preservacionista de um lado e do criativo do outro, mas decerto não teria tomado partido por nenhuma. E não apenas devido às suas ligações à família Marsalis, pois, além da sua relação de trabalho com Branford, foi aluno do pai dos dois irmãos, Ellis Marsalis. Diz ele a propósito da polémica: «Admiro ambos esses homens, pois fizeram o esforço de construir as suas narrativas de acordo com as respetivas filosofias musicais. Acho isso admirável.» Aliás, foi com especial agrado que soube do lançamento pela Clean Feed, a mesma etiqueta que editou o seu City of Asylum e o novo Crowded Solitudes, de um disco do trompetista Nate Wooley, ícone do jazz mais experimentalista, com composições de Wynton Marsalis. «Parabéns ao Nate por permitir que a sua visão e as suas escolhas de materiais ultrapassassem esta divisão ontológica. Ainda não ouvi (Dance to) The Early Music, mas estou ansioso por esse momento», comenta.

Uma pergunta se suscita… Será que o Eric Revis que toca com Branford Marsalis e Kurt Rosenwinkel, que acompanhou Betty Carter, Lionel Hampton e McCoy Tyner, que colaborou com Steve Coleman e com Peter Brotzmann e que colidera o exploratório trio Tarbaby é sempre o mesmo? A resposta: «Sim e não. Sou um músico diferente quando toco com uns e outros somente porque sou um músico diferente, ou os 20 anos que levo a fazer isto teriam sido um desperdício. Um dos primeiros objetivos de um músico, e particularmente de quem integra uma secção rítmica, é respeitar não só a música como o contexto em que se insere. A minha postura foi sempre a mesma com todos os músicos com quem toquei, fossem mainstream ou de vanguarda. Tenho responsabilidades e adoro assumi-las. Como disse o meu querido amigo, e saxofonista, JD Allen, "deixa que o castigo corresponda ao crime".»

Estamos, portanto, diante de um músico desalinhado, um músico cuja fidelidade à causa do jazz e da improvisação não o impede de ouvir outros idiomas musicais como o hip-hop, o rock e a música erudita contemporânea. Afirma ele que para «ampliar» o seu «leque de recursos e escolhas»: «O meu único compromisso é dar uma lógica inerente à música que toco. Essa lógica não é preconcebida… embora também haja espaço para tal. Repare-se que até a maior parte dos grandes livre-improvisadores trabalha com construções muito elaboradas e lógicas, ainda que regra geral sejam não-lineares. Um estudioso da escrita, da linguagem e da sintaxe pode decidir escrever extemporaneamente, mas não cometerá erros ortográficos. Adoro o que Derek Bailey fez: não só era um instrumentista revolucionário como uma das mais fascinantes mentes musicais que já existiram. O meu interesse particular vai para a improvisação, mas tenho um enorme respeito por aqueles que atualizam a sua arte, mesmo que isso signifique deixarem de improvisar.»

No meio disto, surge o Eric Revis Trio. Ou Trios, dado que um dos vértices do triângulo, o do baterista, tem variado de ocupante. No já mencionado City of Asylum quem está registado é Andrew Cyrille, veterano ritmista que se manteve na Unit de Cecil Taylor durante uma década. Em Crowded Solitudes as baquetas são seguradas por Gerald Cleaver, um dos valores maiores da nova geração. Nesta vinda a Portugal do grupo, Revis decidiu incluir outro histórico, John Betsch, conhecido sobretudo pela sua longa colaboração com Steve Lacy, mas também pelas associações a Marion Brown, Abdullah Ibrahim, Henry Threadgill e Mal Waldron. Os convites a Cyrille e Betsch são bastante simbólicos: a tradição em que Revis pega, neste caso, é a do free jazz, não a do be bop ou do hard bop, mais frequentes no seu percurso. Significativa é, ainda, a inclusão de um expoente do pianismo jazz em emergência como Kris Davis, mais uma vez traduzindo numa personalidade e na sua circunstância a fórmula de renovação estilística tão cara ao músico.

«Sempre gostei de tocar num trio de piano e sempre desejei formar um que fosse meu. Há alguns anos, tive a oportunidade de me juntar ao quarteto do saxofonista Bill McHenry no Village Vanguard, ao qual pertencia Andrew Cyrille. No final dessa semana, convenci o Sr. Cyrille, cuja música eu ouvia há muito tempo, e a Kris, de quem era fã, a irem comigo para estúdio gravar City of Asylum. Mas ainda que eu tivesse a noção da importância histórica destes artistas – sim, incluo Kris Davis, apesar de ser mais jovem –, a minha única preocupação era criar música com pessoas que admiro», explica Revis.

Não surpreende, assim, que a ênfase destes trios vá para a improvisação "livre", com aspas porque Revis considera que nunca o improviso pode ser completamente o que tal designação anuncia – o próprio trajeto de um músico, a sua formação, os seus interesses, o instrumento que toca com todo o seu historial e as suas limitações físicas e lexicais, até o público e o espaço agem já como pauta para a espontaneidade. «Até quando há material escrito, sejam as minhas próprias composições ou as peças de Thelonious Monk e Keith Jarrett que utilizamos, trata-se apenas de bases para nós podermos "dançar". O que torna este processo efetivo é a perspetiva que partilhamos coletivamente enquanto grupo», sustenta.

Para todos os efeitos, e ao contrário do que fazia Duke Ellington com a sua orquestra, assim tendo firmado um padrão para a posteridade, Eric Revis nunca compõe tendo em conta indivíduos particulares. As peças previamente preparadas que vamos ouvir serão interpretadas por Betsch como foram antes, à sua (deles) maneira, por Cleaver e Cyrille: «John Cage disse uma vez que os artistas têm de ser capazes de se divorciarem das suas preferências, de maneira a que a música se emancipe dos gostos particulares do compositor. Pode haver a tendência para aplicar noções preconcebidas quando se compõe especificamente para a interpretação de um ou outro executante e isso acaba por limitar as vozes individuais para as quais se destina uma partitura. O que, obviamente, não acontecia com Ellington…»

Num país, como o nosso, em que se ergueram barricadas para circunscrever os tipos de abordagem do jazz existentes, com trocas de acusações e por vezes até tiros disparados de um lado para o outro, a mensagem de Eric Revis e o seu exemplo pessoal são de extrema importância. Esperemos que constitua mesmo uma lição a seguir, reconciliando o que tão artificialmente tem estado separado. Ou isso é esperar demasiado de um concerto, ainda que se preveja, pela audição dos discos, que este será magnífico?

 

Rui Eduardo Paes

(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)