São a nova grande surpresa do jazz, num país que tem tido algumas nos últimos anos, como as revelações de Hugo Carvalhais, de Marco Barroso com o LUME, de João Guimarães com Zero e Fail Better! ou do Ensemble Super Moderne e do Coreto. No caso dos Slow is Possible por maior força de razão: os sete jovens músicos que o constituem não cresceram nos meios do jazz: a sua formação é clássica. E fizeram-no longe dos grandes centros deste género musical, Lisboa e Porto. Habitando em várias cidades do interior português, foi na Covilhã, devido aos seus estudos na Universidade da Beira Interior, que se conheceram. Ou seja, não têm nenhum dos tiques e dos truques habituais no jazz: o que tocam é tão fresco quanto uma alface acabada de colher.
O jazz que praticam revela influências eruditas, como não podia deixar de ser, mas também do rock e das músicas exploratórias, dando um relevo à melodia e ao ritmo que o torna particularmente acessível. O trabalho harmónico desenvolvido pelo grupo pode ser complexo, como estranhas serão a um ouvido não treinado algumas situações sonoras que explora, mas os seus temas entram facilmente no ouvido e ficam lá. Muito devido ao carácter cinematográfico das composições, fruto de um especial interesse pelo cinema experimental e por realizadores como Myra Deren e David Lynch. Uma referência estará nos filmworks de John Zorn, mas não se torna especialmente determinante.
A instrumentação do septeto é bastante invulgar. São três os instrumentos melódicos, um saxofone alto, um clarinete (com e sem efeitos eletrónicos) e um violoncelo. A secção rítmica compreende dois instrumentos harmónicos, guitarra (também com funções de introdução de ruído elétrico) e piano, associados aos jazzisticamente convencionais contrabaixo e bateria. Esta combinação de timbres dá à música produzida uma dimensão de câmara que é minuciosamente aproveitada. Slow is Possible é a música de câmara que toca quem ouviu Charles Mingus, John Coltrane, Mr. Bungle e Keiji Haino e resulta tão bom quanto o melhor que se poderia desejar.
Bola de neve a rolar pela encosta
Quase tudo – a exceção está em alguns temas, ou passagens deles, que chegam a ter o ímpeto, e a intensidade, de uma cavalgada – nos Slow is Possible é lento, parecendo até que a escolha do nome do grupo foi premonitória. Levou tempo a desenvolver a fórmula pretendida, revelando um invulgar cuidado no tratamento dos materiais. Bem como a chegar, em 2014, à gravação do primeiro disco, de título homónimo, numa escola de aldeia convertida em estúdio, longe das vistas e dos ouvidos. Um ano passou, vagaroso, até à edição do álbum pela JACC Records, quando estava 2015 a terminar, e as reações da crítica, dos melómanos e dos produtores e organizadores de concertos e festivais vêm decorrendo em ritmo pausado. Mas começaram a fazer-se sentir, e agora o empreendimento está finalmente a conquistar a visibilidade que merecia – este concerto na Culturgest é um indício disso, bem como a participação no Portalegre JazzFest que se segue, em março, e outras que estão agendadas para a primavera e o verão em alguns dos principais palcos do País.
Porquê, se a música que se propõe é de uma qualidade, de uma frescura, de uma força que têm intrigado, senão pasmado, quem já a ouviu? A resposta é inevitável: porque este é um projeto nascido fora dos centros habituais do jazz, Lisboa e Porto, e os músicos que o constituem, muito jovens ainda, não têm um passado na cena nacional. É isso que imediatamente os distingue, não obstante o fator "geolocalização" não ser determinante para o porta-voz do coletivo, João Clemente, que não o aceita como justificação total para o facto de os Slow is Possible irem na direção contrária à da maré: «A geografia define uma parte de qualquer ser vivo deste planeta, mas isso não significa mais do que isso: uma parte. No nosso caso, nunca sentimos a necessidade de lutar contra coisa alguma, pois a indiferença é bem diferente do ódio e do amor. Quando se vem de sítios onde ninguém quer saber o que estás a fazer, não és contra nada. Para algo acontecer, o mais importante é ser a favor. O foco passa exclusivamente por aquilo que se quer fazer, sem limitações ou condicionalismos.»
Mas há mais. Além da lentidão dos processos, assumida por Clemente, Patrick Ferreira, Bruno Figueira, André Pontífice, Nuno Santos Dias, Ricardo Sousa e Duarte Fonseca numa nada juvenil atitude de paciência relativamente às "regras do jogo", também quase tudo o que caracteriza o grupo distancia este da vulgata do jazz. Em primeiro lugar, nenhum deles frequentou o ensino deste género musical – foi na Escola Profissional de Artes da Covilhã que se conheceram, enquanto estudavam… música clássica. Nas primeiras apresentações públicas, identificaram inclusive o seu estilo como «música de câmara contemporânea», apesar das intervenções de uma guitarra elétrica, uma bateria, um contrabaixo dedilhado e alguma eletrónica em tempo real, com todas as implicações (levando-os para fora dos "aposentos do rei") a nível de amplificação e projeção sonora no espaço.
Segundo Clemente, assim se fez porque a definição era suficientemente vaga para que permitisse «terminar rapidamente as conversas chatas tidas connosco por pessoas que, claramente, não queriam ouvir». O próprio nome Slow is Possible expõe as origens não-jazzísticas da banda – alude a uma composição de John Cage, As Slow as Possible, ou ASLSP, como ficou mais conhecida. Cage, considera o guitarrista, é necessariamente «uma referência para qualquer músico nascido depois de 1950». Como é que isso se traduz no jazz destes rapazes que vivem em vários pontos da Beira Interior? «Não conseguimos fazer de conta que não o conhecemos. A maneira que ele tinha de entender a música, o respeito pelo silêncio e a curiosidade por todos os sons são, talvez, as maiores influências que retiramos desse compositor.»
Nada disto significa que estamos diante de uma manifestação mais daquilo a que se chama "jazz de câmara". Essa vertente está presente, sem dúvida, mas é apenas uma entre várias. «Quando formámos os Slow não houve uma escolha consciente do tipo de música que iríamos tocar. Tocamos o que nos apetece e aquilo de que gostamos. Nascemos nos finais do século XX, na era da informação, e as barreiras de idiomas e estilos são para nós questões do passado. Estamos abertos à experiência e, acima de tudo, temos um enorme fascínio pelo que não sabemos e não conhecemos. Jazz, rock, música erudita, noise... não tememos os rótulos, mas também não queremos alimentar essa necessidade de encaixotar pela forma. Não é a fisionomia que nos atrai, é o teor», ficamos a saber.
Acrescenta o músico, para ir mais fundo na questão: «Nunca nos vimos como músicos "clássicos", "improvisadores" ou seja o que for. No que diz respeito aos circuitos estabelecidos e aos tiques destes, a verdade é que não temos grande noção deles. Sabemos é que não há um manual de instruções para gerir uma banda como a que pretendemos manter, e por isso vamos aprendendo enquanto fazemos. Corremos atrás do que nos chama a atenção e isso leva-nos a sítios desconhecidos e imprevisíveis. Se nesse lugar são as melodias que reinam, então é assim que fica. Se o sítio onde chegamos implica romper lábios e cortar dedos, também seguimos por aí. É a própria música que nos guia.»
O que vamos, então, ouvir dos Slow is Possible? Um jazz contaminado por outras músicas para além da clássica, com especial relevo para a sonoridade, a energia e a desenvoltura expositiva do rock e revelando até um apreço particular pelos refrões cantabile da pop, com frases temáticas que ficam no ouvido muito depois de as termos escutado. Um jazz, também, que incorpora o tipo de texturas abstratas próprio da música livremente improvisada e que, em termos composicionais, ganha frequentemente uma dimensão cinematográfica. Por vezes, diga-se, remetendo-nos para a escrita de John Zorn destinada ao pequeno e ao grande ecrãs. A este último nível, é de referir que, entre o registo do álbum Slow is Possible e a sua publicação, o grupo atreveu-se ao mesmo que Zorn já realizara e apresentou Sense of Becoming, criação que lhe foi bastante gratificante: musicou seis "curtas" da cineasta Maya Deren numa aplaudida sessão do FMD – Festival Materiais Diversos, em Minde.
«Algumas das nossas referências vêm da sétima arte e partilhamos o mesmo gosto por vários realizadores. Ainda assim, o cinema tem um papel diferente na vida de cada um de nós e não somos propriamente cinéfilos. No que diz respeito a John Zorn, não é apenas a sua música para cinema que nos inspira: conhecemos o seu catálogo a fundo e nunca escondemos a admiração e o respeito que temos por ele», esclarece Clemente. Aliás, a componente imagética dos Slow is Possible é extensiva à literatura, e se o estranho mundo visual de Deren tem inspirado a banda, o polémico e incómodo romancista Charles Bukowski deixou-lhes igualmente algumas marcas. No CD, dedicam-lhe até uma faixa, Chasing Bukowski.
«Somos naturalmente atraídos para os âmbitos mais obscuros: parecem-nos mais interessantes e íntimos. Gostamos de autores que têm uma voz própria. A nossa componente experimental advém da curiosidade, da vontade de saber "o que é", "como fica", "o que traz". Não vem de uma lógica refletida e muito calculada. Andrei Tarkovsky, David Lynch, Woody Allen, Maya Deren, Kenneth Anger, Charles Bukowski, Al Berto, Herberto Hélder, Lars Von Trier, Charles Baudelaire, Jain Painlevé, Alejandro Jodorowsky, Sergei Parajanov, Antonin Artaud, Arthur Rimbaud são autores que não colocamos em gaiolas. Para nós, as suas obras são livres e, por conseguinte, têm influência na música que fazemos», comenta João Clemente.
O concerto a que vamos assistir baseia-se no repertório do disco, mas como não podia deixar de ser incluirá temas novos. Todos eles refletem os gostos e preferências destes sete beirões, mas há a vontade de escapar a conceitos demasiado definidos: «Depois de vários meses a trabalhar em função dos filmes de Maya Deren, agora queremos fazer música livre de parâmetros. Se eles surgirem não os negamos, mas neste momento o nosso campo criativo é uma folha em branco.» É por esse motivo que os Slow is Possible estão a encarar esta e futuras atuações ao vivo como o «mais únicas possível». Cada uma será diferente da outra. «Não sabemos ainda o que irá acontecer e é assim que gostamos», adianta João Clemente.
Tal abertura decorre do próprio modo de funcionamento desta pequena big band. Como habitam em cidades diferentes, os seus participantes encaram cada sessão conjunta como uma oportunidade que deve ser aproveitada ao máximo. E como não há um só compositor ou um "maestro", o debate é imprescindível para se obterem consensos. «As composições são sempre coletivas. Varia aquele de nós que traz a faísca, mas os temas são feitos em grupo. Não existe uma receita de composição: cada música tem o seu método e tentamos abordá-la com verdade, ou seja, nada é sagrado e a ideia que melhor servir é a que adotamos. E essa ideia permanece até uma nova sensibilidade se instalar e levar a que seja refeita. Nunca é simples marcar ensaios, o que nos ajuda a concentração e a não tomarmos nada como certo. Definitivamente, os nossos ensaios não são uma ida ao parque.»
Mais concretamente: «Até à data, todas as músicas dos Slow têm partes compostas e definidas, mas a orgânica vem das secções que deixamos em aberto. É natural o modo como isso acontece. Waiting Like a Dog foi criado num dia e está, basicamente, igual até hoje. The Robbery, que foi o primeiro tema que escrevemos, já teve muitas e muitas versões, e a última foi fechada apenas no dia em que a gravámos para o álbum. Cada música tem de ser abordada como é e segundo um conjunto de regras próprio. Nunca esculpimos em pedra. Tentamos, sim, construir castelos de areia. A partilha faz parte da génese e as dinâmicas estão em constante mutação. A única coisa absoluta é esta: não há líderes. A metáfora que melhor funciona é a de um barco com 14 remos. Se num dia o Patrick faz uma melhor leitura das estrelas é ele quem comanda, e assim se passa com todos.»
João Clemente foi apenas o elemento aglutinador, a figura que deu início à viagem: «Os músicos não se conheciam todos e eu fiz essa ponte. Neste momento, cada um tem o seu campo de ação. A partilha de referências é, e sempre foi, comum a todos. Eu mostro Albert Ayler e alguém me dá a ouvir Émile Parisien, eu falo em Mr. Bungle e alguém me indica Moondog.» Os Slow is Possible começaram por ser o que são hoje, um septeto, mas com uma segunda guitarra, acústica, tocada por André Vaz. Depois, com a saída deste, tornaram-se num sexteto, formato com que o CD foi gravado. Recentemente, entrou o pianista Nuno Santos Dias, e alguns aspetos sofreram uma evidente modificação.
Só podia ser assim. «A entrada e saída de elementos altera, obrigatoriamente, a química de qualquer grupo. O que está no disco é bem diferente do que fazemos neste momento. O facto de termos agora dois instrumentos harmónicos abre portas para novos territórios. Não entram elementos para os Slow apenas porque queremos ter uma bateria ou um piano. Entram porque são o Duarte e o Nuno, pessoas que encaixam perfeitamente na genealogia da banda.» Desta e não só… Clemente e André Pontífice estão juntos igualmente no trio de jazz Coffee and Cigarettes, que conta com um rol de aparições, sobretudo em bares. O mesmo Clemente está à frente da orquestra de improvisação Salad Ensemble, entre cujos 16 membros encontramos todos os demais Slow is Possible, incluindo o desistente Vaz.
O que se segue? O que anuncia e significa esta aceleração da vida do grupo? «O que queremos agora são concertos, e quantos mais, melhor. Reunimos material suficiente para voltar a gravar e queremos encontrar forma de o fazer. De qualquer maneira, não temos ilusões e sabemos qual é o nosso lugar: ainda somos peixe miúdo, com muito para aprender e para crescer», diz João Clemente com humildade. O certo é que as avalanches começam com simples bolas de neve a rolar pela encosta. Os Slow is Possible são tão surpreendentes que só poderão impor-se. Isto se o habitual alheamento português a tudo o que agita as águas não os mantiver como um segredo bem guardado. Já nem isso parece, no entanto, possível: o que tinha de acontecer está irremediavelmente em curso.
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)