Este trio esteve na Culturgest pela primeira vez em outubro de 2011 a apresentar o álbum Historicity (2009), que recebera enormes elogios da imprensa de todo o mundo, especializada e não só. Foi considerado o melhor disco do ano por imensas publicações.
Voltou em maio de 2013, quando comemorávamos os nossos 20 anos, com um concerto baseado no CD Accelerando (2012), ainda mais louvado do que o anterior.
Agora o disco que apresenta é Break Stuff (2015), também ele aplaudidíssimo por toda a gente. É muito raro haver uma tão grande convergência de opiniões sobre uma banda de jazz e o seu líder.
Os críticos de todo o mundo reunidos pela revista Downbeat – a mais conceituada de todas as publicações dedicadas ao jazz – têm considerado repetidamente Iyer como artista do ano e todos os álbuns do Trio melhores discos do ano. Em 2012 este músico, compositor, cientista (em tudo o que se mete se distingue), foi o primeiro em cinco das categorias em que se desdobra a votação dos críticos recolhida pela revista: Artista de Jazz do Ano, Pianista do Ano, Álbum de Jazz do Ano, Grupo de Jazz do Ano, Compositor Emergente do Ano. Feito único na história destas votações. Em 2015 e 2016 voltou ser eleito como Melhor Artista de Jazz do Ano.
Rodrigo Amado, crítico do jornal Público, que também concedeu as cinco estrelas a Break Stuff, considerou este álbum «o mais conseguido do grupo», escrevendo que estes músicos «destilam um jazz ultra moderno, simultaneamente acessível e experimental», realçando, entre outras características, a presença da tradição do jazz em todos os temas do CD. E conclui: «De cortar a respiração». É mesmo.
Neste concerto o baterista Martin Gilmore é substituído por Justin Brown, um prodígio que frequentemente faz parte do Trio.
The trio first played at Culturgest in 2011, presenting their award-winning album Historicity, and then in 2013 with their even more highly-regarded CD Accelerando. This time, they'll be playing their new album Break Stuff (2015), described by Público critic Rodrigo Amado as "breathtaking". All of the trio's CDs have been considered best record of the year, and critics have repeatedly voted Iyer artist of the year, with Downbeat placing him first in five different categories in 2012. He was again considered Artist of the Year in 2015 and 2016. At this concert, drummer Martin Gilmore is replaced by Justin Brown, who has frequently played with the trio.
Música para dançar
Com esta terceira vinda a Portugal do Vijay Iyer Trio, continuamos a poder seguir a evolução das pesquisas que o líder pianista desta formação e os seus parceiros – Stephan Crumb no contrabaixo e agora Justin Brown, em substituição de Marcus Gilmore, na bateria – vêm realizando em torno do ritmo. Primeiro ouvimo-los a apresentar o álbum Historicity, de 2009 (concerto em 2011), e depois Accelerando, de 2012 (tocado ao vivo entre nós em 2013). Desta feita, é Break Stuff, de 2015, que nos irão dar a ouvir, com a importância de, entre todos, ser o disco que mais longe vai na busca de novos parâmetros a partir dessa tradição a que chamamos jazz e de outras músicas que nasceram nos Estados Unidos, como o funk e o hip-hop. Este é, aliás, um fator-chave no pensamento de Iyer: «A minha identidade como artista está ligada ao último século da vida americana e a todo o seu fluxo de música. E se outros fluxos existem no que faço, perceciono-os com um ponto de vista americano. Tyshawn Sorey chamou-me uma vez de "americanista" e acho que tem razão. Sou um americano de ascendência indiana que tem valências com as comunidades afro-americanas e com outras ditas "de cor"», comentou já a propósito.
A premissa das inovações rítmicas introduzidas por Vijay Iyer está no próprio título do projeto Break Stuff. Os breaks, ou pausas, a que faz alusão são os mesmos que se praticam, por exemplo, no rock (breakbeats) ou no rap (breakdance) e que ele define como «períodos nos quais podemos agir» ou «momentos em que tudo pode ganhar vida». Refere-se ele aos intervalos entre notas, aos espaços, às respirações, em suma, aos silêncios. Nenhuma pulsação, nenhum padrão rítmico, é possível sem a utilização do silêncio como elemento propriamente musical e não como o contrário do som, mas se esta perceção é quase de senso-comum, o antigo físico que nos volta a visitar desenvolveu-a de tal modo que fez dela uma fórmula. Implicadas estão uma fragmentação estrutural da música, a suspensão ou interrupção de uma trama (que pode tomar a forma de um sincopante pára-arranca-pára) e uma abordagem pontilhística das construções, nesse sentido funcionando como o aprofundamento, até ao extremo das possibilidades, da maneira como Thelonious Monk tocava. Numa frase com, por exemplo, sete notas este deixava três à imaginação do ouvinte.
É assim que, no CD em causa, o tema Hood surge como um tributo a um pioneiro do techno de Detroit, Robert Hood, que uma composição de John Coltrane, Countdown, seja objeto de uma revisão inspirada na música para percussão da África Ocidental ou que, em Mystery Woman, seja invocado um raga do Sul da Índia. Em todos esses casos, seja com partituras próprias ou com apropriações de clássicos da história do jazz e de canções do domínio da pop, Vijay Iyer enfatiza que o ato de não tocar é tão essencial como o de tocar e que as "brancas" colocadas entre os sons são tão fundamentais quanto os próprios sons. Este imperativo do silêncio pode até fazer com que nesta fase do músico pareça haver pouco para ouvir, mas a realidade é que, se Historicity e Accelerando eram já obras transformadoras, Break Stuff atinge um nível renovador que por todos tem sido reconhecido. Não só nesse particular como no facto de se jogar com a própria noção de tempo, mediante o uso de repetições, subtis variações e sobreposições de métricas dissemelhantes que fazem com que a música vá mudando e ganhando em efeito dramático e em tensão.
Essa caracterização de novidade e diferença acontece também numa perspetiva de redução de materiais, e não apenas porque as faixas que compõem este disco e que serão interpretadas em palco são adaptações de peças originalmente destinadas a agrupamentos mais extensos, designadamente um sexteto (Hood) e um ensemble de 18 elementos (Open City). Iyer chama a tal modus operandi de «subtração» e este é muito mais do que retirar timbres instrumentais ou até proceder a uma «destilação» de componentes: «Trata-se de outra coisa, de algo como fazer uma versão dub de um tema», diz, aludindo às manipulações de estúdio do reggae. Ou seja, cada "canção" é «tratada como um ambiente ou como uma canção sem a canção». Isto implica uma atitude particular relativamente à escrita. Muitas das composições de Vijay Iyer, mesmo quando o que ouvimos aparenta um elevado grau de complexidade, são por ele entendidas como «tarefas», simples indicações de procedimentos. «Podem ser muito específicas em certos aspetos, mas noutros deixam tudo à decisão no momento dos músicos. Por exemplo, digo ao executante para tocar dois ou três intervalos com a mão direita numa determinada linha, mas não defino como deverá ser essa linha e que dinâmica ou tempo tem de utilizar. O que quer dizer que quase tudo o que fazemos é improvisação», explicou numa entrevista.
Se as pautas são abertas, não há propriamente determinismo composicional ou do compositor, ou melhor, os restantes elementos do trio participam na composição – ainda que na altura da performance, improvisando. Assim como não persiste a convencional hierarquização de papéis que encontramos num trio de piano jazz: o Vijay Iyer Trio atua coletiva e igualitariamente, e se por vezes julgamos reconhecer um solo, este não é mais do que um aspeto, sublinhado, da interação de conjunto. O relevo no grupo do contrabaixista e do baterista equipara-se com o do pianista, e este, sendo o mentor do projeto, pode aparecer bastante frequentemente como um acompanhante. Aliás, só dirige realmente quando dá as deixas para o que se fará a seguir, surgindo estas espontaneamente e não de um cálculo predeterminado. Ainda que esta alteração funcional chegue ao ponto de destinar à bateria uma intervenção melódica e harmónica (e daí que se refira a influência de Max Roach na música do trio), já que o piano se detém, sobretudo, nos planos rítmicos.
Ora, porque esta é uma música de marcações, pontuações e síncopes, o peso nela da contagem é bem capaz de ser maior do que na generalidade do jazz. Iyer irrita-se, no entanto, quando a crítica a apresenta como algo de cerebral, ligando essa circunstância ao facto de ele ter formação superior em física e de haver o estereótipo de que "os indianos são bons em matemática". «Regra geral, essas considerações acompanham a tendência dos críticos, que são maioritariamente brancos, para determinar o que a "música negra" é ou devia ser, o que não passa de puro racismo. Se eu fosse negro e tocasse exatamente a mesma música, com certeza que não diriam que sou "matemático", pois parte-se do princípio de que a música de um afro-americano não pode ter conceito, rigor ou conhecimento, e isso, repito, é racista. Tive a sorte de trabalhar com figuras como Steve Coleman, Butch Morris, Wadada Leo Smith, Roscoe Mitchell e George Lewis, e todos eles são grandes pensadores, são intelectuais», comenta recorrentemente.
Eis, portanto, uma prática musical que procura verificar o que acontece nas pausas, tendo a noção de que nestas se pode «criar situações que possamos improvisar». A fórmula tem mais que se lhe diga e pressupõe uma aprendizagem, sobre «como se ouve e como se perceciona o que se ouve, e como se relaciona o que ocorre musicalmente com as nossas próprias contribuições criativas individuais». Este tipo de atitude envolve ter uma noção de «como o corpo age e de como a música é feita de ação corporal». Estes fatores, segundo Vijay Iyer, provêm do lado científico da música. E a ciência, aqui, não é a da matemática, mas da motricidade humana, da anatomia em movimento, da biofísica. É, também, uma ciência social, pois a música é um ato que só pode ser vivido socialmente, «é interdependente, dado que criamos para e com os outros». Como já afirmou, não se trata de tocar uns «sons bonitos», mas de coreografar «um ballet» que nos chame a todos, os músicos que estão no palco e os ouvintes.
Isso faz-se por uma gestão de energias, e nesse ponto percebe-se porque é que Vijay Iyer aprecia tanto o formato trio: «Só três é que se podem tornar um, nunca dois. É a três que se resolvem as diferenças existentes entre dois, criando um balanço de energias e disposições.» Neste capítulo, o pianista de Nova Iorque insurge-se contra aqueles que abstraem as energias musicais das pessoas que as produzem, objetificando um disco ou um concerto. «Quando ouvimos música estamos a ouvir uma pessoa ou um grupo de pessoas, e a verdade é que ouvimos tudo o que ela ou elas são. A música revela o que somos de um modo que nenhum outro meio supera», acha. Mas não é um essencialismo do ser que nos transmite, ou se é tem em conta que a nossa essência como indivíduos não é uma coisa inerte, e sim algo que está em permanente evolução. É essa nossa característica profunda que mimetiza musicalmente: «Abraço a mudança e permito-me a transfiguração. Pode ser que o que eu faça na próxima semana não seja do agrado de quem gostou de mim na semana passada, mas pouco importa. O que realmente importa é o momento, o instante do fazer musical para, com e entre os outros. Nada mais existe. Nenhum de nós quer ter uma existência sempre igual. Manter uma identidade fixa significa ser todos os dias o mesmo, e nós queremos mudar, queremos crescer.»
A improvisação permite que a música não seja objetificada, na medida em que expõe o processo. A break stuff do Vijay Iyer Trio não podia ser mais processual e, nesse sentido, desestabilizadora de um entendimento cristalizador do jazz. «É isso que nos dá força, que nos renova em cada dia como músicos e como pessoas», argumenta. Jazz? A designação incomoda o também professor em Harvard: «Insiro-me na tradição de resistência a esse termo que é tão velha quanto o próprio termo, pelo facto de ser usado para banalizar e reduzir, ou para apropriar, a criatividade negra. O Coltrane disse uma vez que "jazz é apenas a palavra que escolheram para vender a nossa música" e concordo com ele.» Jazz é um nome branco que delimita a amplitude da música que refere, incompatível com o que muitos jazzmen fizeram de facto, como foi o caso do autor de Expression: «Ele insistiu na possibilidade de autotransformação através da música, e é isso o que eu igualmente faço.»
Esta não é só uma opção estética, é uma opção ética e uma opção política. «Para mim, jazz é o presente estágio do continuum de uma história de comunidades, de ideias e de lutas, é um património vivo, não um género musical institucionalizado. Aquilo a que se chama jazz é tão diverso, tão amplo e tão aberto que esse tag se tornou absurdo», defende Iyer. A forma como vê o ritmo, valorizando acima de tudo o que este lhe faz sentir e como lhe põe o corpo a mover-se, não corresponde minimamente a uma perspetiva conservacionista do jazz. «Eu podia ser um produtor de hip-hop», afirma com humor. Sim, as investigações rítmicas deste trio só poderiam ser realizadas por quem ouviu, e com muito prazer, De La Soul, A Tribe Called Quest, Ice-T e LL Cool J. Que são, para todos os efeitos, expressões derivadas desse preciso continuum musical da diáspora africana na América e no mundo. Não, a matemática não nos faz dançar, mas Vijay Iyer sim…
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)