Vinte anos passados desde a edição de Azul, o primeiro disco do trio de Carlos Bica com Frank Möbus e Jim Black, eis que o trio está de regresso, em disco com selo Clean Feed e no palco da Culturgest. Com a solidez de projeto que o tempo transcorrido foi urdindo, mas também com a frescura decorrente de todos os três músicos quererem ir mais longe, não se repetindo nem se contentando com o que já fizeram – e foi, como se pode imaginar, muito. Com os Azul de 2016 reconhecemos a identidade da escrita de Bica e do som construído por estes três mestres do jazz do século XXI, mas descobrimos algo mais, entre o que estava já anunciado nos álbuns anteriores e o que não esperávamos de todo…
Um exemplo do primeiro caso é Silver Dagger, arranjo de uma velha canção folk norte-americana em que se carrega na vertente blues, com A Lã e a Neve a representar o segundo da melhor maneira, irrompendo por uma malha de rock que a parceria composicional do contrabaixista com João Paulo Esteves da Silva não fazia supor. Quanto ao restante repertório, são muitas as vias percorridas, umas na linha meditativa e lírica que tanto define o "estilo" de Carlos Bica (Na Rama do Alecrim, tema do cante alentejano), outras com um balanço jovial e bem-humorado, como Skeleton Dance, e outras ainda explodindo em frescos de inaudita complexidade, a começar pelo contagiante X.Y.U.
Quando, ao sexto disco, e com tantos concertos de permeio, ainda nos conseguimos surpreender com a música de uma banda, temos motivo para celebração. Vinte anos depois, aí estão os Azul de Carlos Bica, melhores do que nunca.
Rui Eduardo Paes
Twenty years after the release of their first album Azul, the Carlos Bica trio (with Frank Möbus and Jim Black) are back, with a new-found freshness and wanting to go further. We can still recognise the identity of Bica's writing and the sound of these three jazz masters of the 21st century, but there's something more and completely unexpected… a remake of an old folk song with a blues feel, blues mixed with rock, meditative and lyrical music, jovial and good-humoured tunes and others exploding into frescoes of great complexity. Twenty years later, they can still surprise us. Better than ever.
Vinte anos depois de vinte anos antes
More Than This. Um título de disco pode não necessitar de explicação ou pode explicar-se a ele próprio, mas no caso deste encerra todo um conceito. "Mais do que isto" quer dizer realmente o quê? Que a música incluída é a que podemos esperar do Azul e algo mais que esteja para além dela? Carlos Bica elucida-nos sem desvendar demasiado o mistério: «Este título prosaico é mais filosófico do que pode parecer, porque na vida há sempre algo para lá do óbvio. Quer na música, quer no quotidiano deparamos sempre com o que nos transcende. Se olharmos para uma velha mesa de madeira poderemos dizer que é apenas uma mesa, mas na realidade é muito mais do que isso. Essa madeira já foi árvore, já terá passado pelas mãos de um artesão, já houve quem tivesse dançado em cima dela ou quem nela tivesse derramado lágrimas. Podemos igualmente encontrar diferentes dimensões na música. O mais interessante pode ser mesmo o que ficou por dizer, mas está implícito.»
Passados 20 anos do arranque deste trio e do álbum que lhe deu uma cor como nome, a música do Azul de Carlos Bica continua a revelar novas facetas sem que tal implique uma mudança de rumo. Tudo é diferente sendo o mesmo, porque até a novidade pode ter continuação e o certo é que este projeto se mantém novo seis discos depois: «Nunca houve uma mudança radical na música que faço com Frank Möbus e Jim Black. Isso tem que ver com o meu papel enquanto bandleader e compositor, mas sobretudo com o cuidado de todos em respeitar a personalidade da banda e em querer torná-la mais forte. Por outro lado, a evolução do grupo acompanhou a evolução dos próprios músicos. Uma coisa prevalece: a eterna busca pela canção perfeita, que é assim que eu gosto de chamar às minhas composições, apesar de não terem letras.» É essa renovada procura que torna a música do Azul mais do que aquilo que primeiro nos soa (ah, as melodias, as melodias!), sempre prenhe de implicações e disposta a revelar as suas diferentes camadas.
Ou seja, é uma música com mais sentidos do que os meramente técnicos, uma música que, sem medos nem complexos, se assume como expressão de emoções, nesse aspeto herdando a tradição romântica do século XIX, aquela que deu corpo aos lieder de Schubert e Schumann, ainda hoje exemplos maiores da tal aproximação à "canção perfeita". Admite Bica: «Tenho uma enorme paixão pelas coisas simples da vida e isso reflete-se na minha música. Prefiro que me chamem romântico a que digam que sou um músico lírico. Certas realidades só podem ser captadas através dos sentimentos.» Esse enquadramento no formato canção passa, inclusive, pelo uso de versões de temas da pop e da folk, como é o caso de Silver Dagger no alinhamento do CD e também no deste concerto.
«Nunca procurei temas com o intuito de fazer covers. Essas músicas vêm-me parar às mãos e quando acontece magia sinto vontade de as abraçar como se fosse eu quem as tivesse escrito. Essas músicas são uma herança universal», afirma Bica. O mesmo acontece com as escolhas que faz do património tradicional português, a exemplo de Na Rama do Alecrim, tema do cante alentejano. Neste procedimento a universalidade do estilo firmado pelo Azul dá vez a uma ainda maior afirmação da portugalidade que se faz pressentir na escrita de Carlos Bica, e tanto assim que este, a par de João Paulo Esteves da Silva, é apontado como um dos pais do "jazz português", assim designado não por ser feito em Portugal, mas por incluir em si traços da nossa própria identidade. O contrabaixista prefere não se colocar ao mesmo nível do seu ocasional companheiro de trabalho: «A música do João Paulo nasce, de facto, como fruto do cruzamento da música improvisada com uma forte e única sensibilidade portuguesa, mas no meu repertório a tradição nacional surge do mesmo modo que surgem outras contribuições, como a música antiga ou o rock. A música que toco resulta do encontro da minha portugalidade com a cultura urbana berlinense, dados os anos que tenho vividos na Alemanha.»
Rock, diz Carlos Bica? Sim, rock, idioma musical que desde sempre é uma componente importante no projeto Azul e que neste More Than This ganha até maior evidência. «Foi com o rock dos anos 1970 que comecei a ouvir música. Faz parte de quem sou e é-me impossível fugir-lhe. O facto de o rock estar mais presente neste álbum surge de maneira muito natural. Aliás, antes de entrarmos em estúdio para gravar eu não estava de todo consciente das particularidades que o disco viria a ter. É impossível controlar o processo criativo», explica. Möbus e Black, os parceiros de Bica, são de resto exímios na incorporação de aspetos do rock nas suas respetivas formas de tocar, e esse terá sido um dos motivos que levaram o português a escolhê-los para o seu trio: «Conheci o Frank no início da década de 1990, quando ele um dia tocou num clube de jazz no Sul da Alemanha. Pouco tempo depois conheci o Jim (ambos tinham sido colegas na Berklee, em Boston). Desde o meu primeiro ensaio com eles, numa sessão realizada em casa do Frank, que lhes reconheci qualidades musicais inéditas que os diferenciavam de todos os outros. Quando pouco tempo depois surgiu a oportunidade de gravar o Azul, já sabia quais os músicos com quem sonhava poder colaborar. Muitos dos grandes sucessos das nossas vidas são conseguidos assim: sem esforço.»
À semelhança da utilização de canções pop, a incorporação na música do Azul de elementos rock não visa propriamente alcançar maiores números de público. Trata-se, simplesmente, de uma opção estética. «Se o intuito é fazer música enquanto arte, tentar agradar uma audiência seria dar um tiro pela culatra. É necessário seguir a nossa intuição e, acima de tudo, sermos honestos. Tu serás o primeiro a saber quando te estás a enganar a ti próprio. Adoro ser surpreendido quando ouço música, e isso leva-me a transpor qualquer barreira aparentemente existente pela castradora separação em géneros musicais. Não posso definir algo cuja essência está no próprio título More Than This», considera Bica.
Há mais a acrescentar sobre a questão. O Azul não pretende especificamente combinar tipos de música, à maneira do que fazia a fusão jazz-funk-rock e depois fizeram os acólitos da colagem, e sim colocar em prática uma nova atitude face ao enorme espectro de músicas da atualidade, não as valorando hierarquicamente segundo as proveniências académicas ou populares, "clássicas" ou "contemporâneas". Temas que vamos ouvir como Skeleton Dance e X.Y.Ungelöst parecem estar nos antípodas, o primeiro soando ligeiro e bem-humorado e o segundo ganhando alguma complexidade. «Desde o início que foi proposta do Azul quebrar as fronteiras entre música séria e música divertida ou dançante. O choro, o riso e o grito são parentes diretos», argumenta o líder desta banda sui generis.
«O Azul é muito mais do que um grupo em que toco, já é quase uma família. Orgulho-me de estar à frente de um trio que tem uma química tão rara de encontrar. A maturidade a que chegámos é um fator importante para entender o sucesso conseguido, mas não é suficiente para definir a nossa fórmula musical. O resto da fórmula está no segredo dos deuses. Em nenhum outro projeto meu faço o que faço com o Azul, até porque cada constelação de músicos conduz à sua própria entidade musical. Tentar uma variação do Azul seria condenar a música à partida», acha Carlos Bica. O que quer dizer que, no dia em que o Azul terminar a sua atividade, arriscamo-nos a deixar de ter o equivalente sinestésico no mundo dos sons desse tom do leque cromático. O desaparecimento do Azul pode levar-nos a deixar de percecionar o azul, mas por vontade destes três isso não se verificará antes dos próximos 20 anos.
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)