Algo que era inimaginável ainda há poucos anos tornou-se num fator habitual: o surgimento de grupos que juntam músicos nacionais a outros de proveniências distantes, e não propriamente para que os primeiros acompanhem quem vem de visita a Portugal. Regra geral, trata-se de formações que também gravam discos e tocam em outros países. Eis mais um caso assim, em estreia absoluta neste concerto. O Hamar Trio reúne o norueguês Klaus Ellerhusen Holm aos "nossos" Hernâni Faustino e Nuno Morão. O que têm os três de comum? A mesma, ou muito semelhante, visão do que é improvisar. E improvisar, para os ditos, é aquilo que Derek Bailey definia como uma «celebração do instante». Ou seja, algo em que cabe tudo o que é permitido pelo tipo de criatividade que se norteia apenas pela intuição e pela espontaneidade. Neste âmbito, é natural que o jazz esteja presente, mas a festa a que Bailey se referia no livro Improvisation: Its Nature and Practice in Music pode englobar também as conquistas que foram feitas ao longo do século XX e neste que há pouco teve início pela chamada música erudita, bem como por todo o património experimental reunido nas margens da música popular.
É esse amplo domínio que Holm tem percorrido, umas vezes mais inserido na tradição do jazz, quando se associa a músicos como Per Zanussi, Fredrik Rundqvist ou Mats Aleklint, e outras atirando-se a territórios menos, ou nada, desbravados, ao lado de Stian Westerhus, Xavier Charles, Jim Denley ou Axel Dorner. O que também caracteriza os seus parceiros portugueses. Conhecido, sobretudo, pelo trabalho que desenvolve com o Red Trio, Faustino não é outro senão um dos motores da extinta e mítica banda de rock alternativo K4 Quadrado Azul e um habitual colaborador dos psicadélicos Signs of the Silhouette. Elemento fundamental do JER Ensemble, que tem apresentado óperas tocadas com instrumentos de plástico, Morão está igualmente ativo como baterista de jazz, percussionista de música exploratória e teclista em contextos da pop inteligente. O que fizerem a três será o reflexo de todos esses investimentos.
Previously unimaginable, but now quite normal, Hamar Trio is yet another in the recent spate of groups combining Portuguese and foreign musicians (Norwegian Klaus Ellerhusen Holm with the Portuguese Hernâni Faustino and Nuno Morão). Playing together for the first time, they share the same view of improvisation, akin to Derek Bailey's description of it as the "celebration of the moment" – creativity guided only by intuition and spontaneity. Their music is jazz, of course, but it also includes erudite music and the experimentation taking place on the fringes of popular music.
Hamar, Amar
Esta é a estreia absoluta do Hamar Trio. Ou seja, antes mesmo do primeiro concerto há o compromisso de continuar o projeto, com mais concertos e a gravação de discos. Por esse lado, nada de especialmente novo, mas acontece que o grupo que agora se apresenta junta um norueguês, o saxofonista e clarinetista Klaus Ellerhusen Holm, a dois portugueses, Hernâni Faustino e Nuno Morão – regra geral, em associações como esta da "prata da casa" com nomes de outros países, estes surgem como convidados. Não é, de todo, o caso. Acontece, também, que a ideia veio não dos próprios intervenientes, mas do programador do ciclo Isto é Jazz?, Pedro Costa, que assim adota e adapta os procedimentos da curadoria de artes plásticas, originando ele próprio uma específica situação artística. Como confirma Faustino: «A iniciativa veio do Pedro, e em boa hora!»
De imediato se percebe o porquê de serem estes os escolhidos: une-os à partida o facto de serem músicos difíceis de catalogar, não coincidindo por inteiro com o idioma musical que calha estarem a tocar, seja jazz, improvisação livre, música de câmara ou rock, e por isso mesmo fazendo com que cada um dos referidos soe a algo mais do que a sua identidade própria. Basta consultar os respetivos currículos e verificar do envolvimento de Holm com uma formação como os Ballrogg, que toca country à maneira do compositor Morton Feldman (!!),de Faustino tanto com o free "desviado" do curso jazzístico normal pelas muitas influências recebidas de Messiaen e Ligeti por parte do Red Trio, e de Morão com o experimentalismo eletroacústico das suas associações a Ricardo Jacinto ou com a interpretação de composições de música clássica em instrumentos de brinquedo, inserido no Ensemble JER.
«Eu já conhecia o trabalho do Klaus com os Honest John e com os Ballrogg e imediatamente achei que seria um desafio bem interessante poder criar música com uma voz tão distinta no atual caldeirão do jazz», comenta Hernâni Faustino. Costa começou por juntá-los aos dois e Nuno Morão chegou ao trio por via de Faustino: «Era necessário adicionar um músico com a abordagem que o Nuno imprime na sua forma de tocar, com uma riqueza de timbres que só poderia vir de alguém que pensa como um percussionista e não como um baterista. Fica assim um grupo com artistas que têm noções muito próprias e uma grande capacidade de trabalho. O Klaus, por exemplo, consegue ampliar os seus recursos de um modo incrível, e isso para mim, enquanto improvisador, é importantíssimo. Poder seguir até ao limite a lógica, ou a falta desta, de uma construção em tempo real é deveras inspirador. A improvisação mostra tudo aquilo que somos, as nossas influências, os nossos trajetos, as nossas individualidades. Acho que os caminhos combinados dos três vão ser bastante férteis e luminosos e que vai existir o que esta prática musical tem de melhor: transversalidade.»
Porque cabe a Faustino e a Morão formular e manter as bases rítmicas e texturais da música que se criar, vantajoso seria que houvesse uma relação anterior entre ambos. É recente, mas há: «Tenho vindo a colaborar com o Nuno num trio que temos juntamente com o saxofonista Nuno Torres. Ele imprime a qualquer música que toque fatores como cor, espaço e tensão, possuindo um nível de concentração que lhe permite interagir com uma grande empatia e com muita personalidade. Um contrabaixo e uma bateria podem por vezes formar uma única voz em termos de dramatismo, de propulsão. E podem até tocar a música que está dentro do silêncio. É isso que eu ambiciono fazer com ele.» Esperará o contrabaixista que o jogo a desenvolver com Morão se assemelhe ao desse outro projeto? O que conduz a uma pergunta ainda mais abrangente: até que ponto os três músicos serão diferentes daquilo que conhecemos dos Ballrogg, dos Honest John, do Red Trio, do Ensemble JER? Às duas questões Faustino responde com um sim e um não…
«Falando por mim mesmo, posso dizer que sou um músico diferente quando toco com este ou com aquele grupo, mas o certo é que existe sempre o cunho pessoal, o ADN que me caracteriza. Mesmo face a todas as particularidades, a todos os diferentes contextos, assumo a responsabilidade de ser eu próprio, e nesse ponto procuro ser o mais honesto possível com os demais músicos. O que quer dizer, inclusive, que salvo raras exceções evito limitar o meu material sonoro e o meu instinto», explica Hernâni Faustino, considerando que algo de equivalente acontecerá com os seus parceiros. Até um músico considerado "incaracterístico" tem as suas pessoalíssimas características e estas surgem em qualquer circunstância, uma coisa não invalidando a outra.
O nome Hamar Trio é já um gesto transversal: «Hamar é uma cidade da Noruega e esse nome foi proposto pelo Klaus. Nós, os portugueses, desde logo achámos interessante a particularidade de ser confundido com a palavra "Amar", que possui uma emoção que não se define, vive-se. Vamos tentar concretizar esse sentimento na nossa música», informa-nos Faustino. Música amorosa, pois, a que se pode chamar jazz, «embora não percamos muito tempo com essas questões de rótulos». «O ser humano é tão cheio de contradições! Na verdade, não interessa saber se se trata ou não de jazz, o mais importante é o que resulta da música, como é que o público a sente e como a acolhe. Trata-se de uma partilha, entre os músicos e entre os músicos e a assistência, e porque assim é faremos tudo para a tornar válida», afirma ainda. São essas as regras de uma parceria e do vínculo com quem ouve que a justifica…
«As colaborações nascem de interesses mútuos e eu procuro-as com frequência. As parcerias que fiz até hoje foram muito importantes para mim, pois trouxeram-me conhecimento e riqueza de formas e meios, fazendo com que crescesse como músico. Naturalmente, e por uma questão de proximidade, as que encetei com figuras nacionais são as que se solidificaram mais, mas acho-as a todas muito gratificantes», afirma Hernâni Faustino quanto ao carácter colaborativo deste investimento debutante. A música improvisada é, por tradição, transnacional, envolvendo músicos de várias proveniências geográficas. O especial relevo desta está na circunstância de reunir representantes de duas das mais dinâmicas e inventivas "cenas" da Europa, a norueguesa e a portuguesa, projetando-a para o futuro e assim não surgindo apenas como mais um encontro fortuito, um acidente de percurso nas vidas dos seus participantes.
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)