Considerado como um dos mais importantes acordeonistas do mundo na atualidade, e levando o seu instrumento para contextos em que habitualmente este não é ouvido, João Barradas tem-se interessado muito particularmente pelo jazz, neste domínio revelando-se mesmo como um improvisador de capacidades fora do vulgar. O seu trio com André Rosinha e João Lopes Pereira enraíza-se fortemente na tradição do género, com uma clara preferência pelas formas do bop e do hard bop, mas as composições do jovem músico concedem a esse figurino um elevado grau de imaginação, frescura e até excentricidade, que passa pela introdução de melodias da Europa Central e de um enlevo rítmico que lembra vagamente o tango savant de Astor Piazzolla. O espectro tímbrico da música do grupo amplia-se consideravelmente quando utiliza o acordeão MIDI, ora surgindo, por exemplo, o som de um piano elétrico Fender Rhodes ou determinada peça ganhando uma dimensão orquestral. E se se torna evidente que as abordagens são virtuosísticas, por vezes até raiando o inacreditável, tudo é colocado ao serviço da própria música.
One of the world's leading accordion players, João Barradas is known for taking his instrument into uncharted territory, above all jazz, where he shows an unusual capacity for improvisation. His trio with André Rosinha and João Lopes Pereira has a clear preference for bop and hard bop, but his compositions add to this extra imagination, freshness and even eccentricity, introducing melodies from Central Europe and rhythms reminiscent of Astor Piazzolla's savant tango. The trio's music has taken on an orchestral dimension, with virtuoso playing that produces sounds bordering on the incredible.
Acordeão absoluto
Se apenas ficássemos pelas aparências, o presente concerto na Culturgest do João Barradas Trio parecer-nos-ia uma depuração da música contida no recentemente editado álbum Directions, em que o jovem acordeonista se faz acompanhar por André Fernandes, João Paulo Esteves da Silva e os mesmos André Rosinha e Bruno Pedroso que com ele agora vão subir ao palco, mais o convidado especial Greg Osby. Ou seja, algo de distinto, e muito provavelmente prenunciando o disco em solo absoluto que está prometido para o próximo ano. A verdade é, porém, que Barradas não está propriamente a fechar o crivo da sua música, tirando elementos ao orquestralismo do CD com que se estreou em nome próprio. À frente de um pequeno grupo ou a sós, essa dimensão continua a estar presente. Daí, aliás, que utilize um acordeão MIDI, possibilitando-lhe este tocar qualquer timbre que lhe apeteça. Um de que gosta é o do piano elétrico Fender Rhodes.
Ele próprio o afirma: «O trio foi a minha primeira formação enquanto líder, projeto esse que começou no final de 2012. Para ser preciso, a música do Directions nasceu de uma escrita direcionada para a secção rítmica, assim se estabelecendo um formato em que o acordeão é o instrumento líder. A música deste meu primeiro álbum é uma espécie de "orquestração" desse trio. Quando retiramos a guitarra e o piano é como se tivéssemos acesso a uma redução pensada dessa mesma música. No meu primeiro disco a solo haverá igualmente uma redução, mas não tão centrada em mim como se poderia pensar: vai contar com composições de Nuno da Rocha, Carlos Azevedo, Hugo Ribeiro, Daniel Davis, Carlos Caires e André Santos, e terei como convidados Sérgio Carolino na tuba e Pedro Carneiro na marimba.»
Apenas com 24 anos de idade e já considerado um dos mais importantes acordeonistas do mundo, João Barradas considera que a sua música tem atualmente duas faces: a do projeto Directions, que inclui esta apresentação em trio, tendo como base a improvisação num enquadramento de bop / hard bop, e a música da sua banda Home, aquela que venceu o Prémio Jovens Músicos 2016 e que gravará já em Janeiro. «Esta é mais orquestrada que o próprio Directions e tem influências do minimalismo, do rock e de compositores de música sinfónica», antecipa.
Porque o núcleo duro de Directions é o trio que vamos ouvir, implícito está que Barradas dá às escolhas de Rosinha e Pedroso para o acompanharem uma importância especial: «Convidei-os a eles por dois fatores. O primeiro é musical. Desenvolvi as minhas ideias de composição e de improvisação e até as minhas ideias estéticas em sessões nas quais ambos participaram, e tanto eles como eu enquanto sidemen. São os parceiros ideais, pois acreditam na direção musical em que me movo e posso discutir com eles as propostas que defendo. O outro motivo é pessoal. Se não é necessário haver empatia e amizade entre os músicos, quando existem o trabalho necessário à criação musical torna-se muito mais fácil.»
E que direção musical é essa, sabendo-se que o acordeão não é propriamente um instrumento jazzístico e que, quando surge no jazz, traz consigo referências diretas a Astor Piazzolla ou ao bal musette, não tendo a música de João Barradas conotações assim tão óbvias? A resposta evita o que já se vai dizendo por todo o lado, designadamente que este português está a contribuir decisivamente para uma (re)invenção do acordeão de jazz: «Fico surpreendido quando colegas acordeonistas e outros músicos de jazz referem que toco de maneira "diferente" e que até fujo aos "maneirismos" do instrumento. Na minha cabeça divido o extremo respeito por todas essas referências do acordeão (Astor Piazzolla, Eugénia Lima, Tommy Gumina, Richard Galliano) com o meu imaginário musical (Wayne Shorter, Steve Coleman, George Gershwin, Herbie Hancock, Charles Ives, Ambrose Akinmusire, Lester Young). Penso que é a adição desses dois mundos que leva a essa dita "diferença".»
O curioso é que Barradas não tem trabalhado apenas na área do jazz. À semelhança de Carolino com a tuba e de Carneiro com a marimba, move-se igualmente nos domínios da música erudita. «Ainda não consigo explicar esta dualidade, nem saber se o jazz e a clássica chegam a encontrar-se de forma mais literal no que faço. Acontece que essas duas famílias musicais são as minhas duas paixões e vão de encontro ao perfil de músico em que me revejo. Passo muito do meu tempo a transcrever solos, por exemplo de Branford Marsalis, Kenny Kirkland, Woody Shaw e Sonny Stitt. Ao mesmo tempo, termino muitos dos meus dias a olhar para partituras de compositores díspares como Michael Van der Aa e Claude Debussy. Apesar de não estar em condições de responder como se de uma certeza absoluta se tratasse, estou a ficar consciente de que essas influências se juntam pelo menos nas minhas composições», admite. Isso está, aliás, patente em Directions, os elementos eruditos integrando-se numa linguagem jazzística que vai do bop original à filosofia M-Base dos já mencionados Steve Coleman e Greg Osby, pelo caminho integrando alguns elementos de world music.
De certa forma, há por aqui o visionarismo decorrente da idade deste músico e da sua condição de "menino-prodígio" do jazz, alguém que, a par de Ricardo Toscano, vem denotando capacidades muito acima do vulgar. "Visionarismo" no sentido de que tem uma visão muito própria da música e de que a persegue com entusiasmo e ingenuidade. «Há menos de uma semana fiz uma viagem de carro com o Ricardo e acho que as coisas se tornaram mais claras para mim com a nossa conversa. A nossa geração é a primeira a crescer com a Internet, com uma oferta cultural vasta e diversificada em Lisboa, com um sistema de ensino preparado para nos receber e com oportunidades para a malta da nossa idade se revelar neste país. De certa forma, sinto que sou um "produto" da cena musical e social que temos em Portugal neste momento. Desde muito novo tive a oportunidade de partilhar o palco com músicos e estéticas muito diferentes. Aconteceu este ano, por exemplo, estar um dia no Palco EDP do Rock in Rio, no mês a seguir ir para Nova Iorque a fim de tocar com Rufus Reid, voltar para ser convidado por Tito Paris e, em outra semana, apresentar o Directions com Greg Osby», afirma.
Em Barradas há mais do que uma superlativa vocação musical – há ainda o facto de dispor de ouvido absoluto, particularidade que se traduz inevitavelmente na música: «Só podia, pois é a única maneira que tenho de perceber os sons. As pessoas com ouvido absoluto criam diferentes formas de perceber a harmonia e juntam diferentes discursos improvisados a essa grelha harmónica. Do ponto de vista pessoal é algo que está completamente presente na maneira como improviso e no meu discurso musical.» Foi, de resto, essa condição física que o levou para a música. «O acordeão tornou-se na forma mais imediata para a minha expressão. Toco desde os 5 anos e improviso desde que me lembro. Desde os meus 19 sinto que posso transportar o que penso, oiço e escrevo para o acordeão», explica.
Foi com Sérgio Carolino, outro extraordinário músico português, que João Barradas gravou o primeiro disco em que podemos ouvi-lo, Surrealistic Discussion. É a sua grande referência: «Encontro nele um dos exemplos máximos do que significa ser um instrumentista de topo. Tem toda a mística de um instrumento "não-mainstream", aliada a um pensamento musical que surge do seu interesse por várias áreas da música e da cultura. Com ele, a tuba torna-se o "sotaque" de um discurso extremamente pessoal. É esse o caminho que eu quero para mim. Ter as possibilidades do acordeão a favor da minha identidade musical.» Quem introduziu o jovem no acordeão jazz foi, no entanto, João Frade, que para ele funcionou como uma espécie de anti professor. «O João motivou-me a pensar "fora da caixa". Não tive aulas com ele no sentido "académico"... Temos uma diferença de 10 anos e ele aconselhava-me ou dava-me CDs para ouvir, frases que transcrevia e ideias para improvisação. Na verdade, faz parte de três acordeonistas que me marcaram muito, sendo os outros Nelson Conceição e Pedro Santos. O meu primeiro professor de acordeão no jazz foi a pianista Paula Sousa, quando eu tinha 15 anos. Agarrei em todas as informações que eles me deram e juntei-as ao que ouvia e ao que tocava, que muitas das vezes não era da mesma estética que me tinham proposto», recorda.
Aparentemente, no circuito do jazz já não se vislumbra o preconceito relativamente ao acordeão que era de regra ainda não há muitos anos: «Vivo um período muito feliz nesse aspeto. Sinto uma enorme curiosidade pelo instrumento e pelas possíveis abordagens do mesmo na música urbana dos nossos dias. Quero acreditar que a personalidade musical, apesar de passar sempre pelo instrumento que a expressa, se sobrepõe a qualquer espécie de "preconceito", seja ele qual for.» O seu acordeão MIDI tem, inclusive, intrigado o público: «Surge da vontade de querer explorar novos sons, sons que não são possíveis de realizar com um instrumento acústico de qualquer tipo.»
Barradas vai tocar na mesma sala em que, há uns anos, se apresentou o acordeonista francês Pascal Contet, em duo com Carlos "Zíngaro", e que atua habitualmente nos domínios da improvisação livre, da música contemporânea e do experimentalismo. É um músico que conhece bem e que admira… «Ele mudou o rumo do nosso instrumento. Tenho uma história muito curiosa com o Contet. Veio a Lisboa passar férias e alguém lhe disse que estava um acordeonista da nova cena do jazz nacional a tocar em trio no CCB. No fim do concerto dirigiu-se ao meu camarim e tive a honra de conhecer pessoalmente este grande nome e receber palavras de apreço e de força que me deixaram ainda com mais vontade de fazer a minha música. Continuamos em contacto.»
Respeito dedica também João Barradas aos acordeonistas Gil Goldstein, Manu Comté, Claudio Jacomucci, Inaki Alberdi e Mika Vayrynen, mas as suas maiores influências no jazz vêm de outros instrumentistas, e para além dos aqui já referidos acrescenta nomes como Kurt Rosenwinkel, Andrew Hill e Buster Williams: «Sou um ouvinte compulsivo de todos eles. Raramente oiço acordeonistas de jazz, aliás.»
O que se segue? «Na primeira semana de Janeiro o trio segue para o Festival de Jazz de Munster, na Alemanha. Na semana seguinte começam os concertos com o meu novo grupo, Home, com música minha. A composição ganhará maior importância neste projeto, assim como a exploração de novos caminhos na improvisação, pelo menos para mim.» Cá estaremos para ouvir este acordeão "absoluto" e orelhudo, que muito promete…
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)