Afonso Pais tem um percurso estabelecido de colaborações com cantores, com relevo para a que vem mantendo com JP Simões, mas também com Rui Veloso, Edu Lobo, Ivan Lins, Dee Dee Bridgewater, Camané e António Zambujo, em todos esses casos colocando um pé, e às vezes os dois, fora do jazz. A parceria com Rita Maria permite-lhe fixar-se no género musical em que estabeleceu a sua linguagem mais pessoal e mais de acordo consigo próprio, por muitas influências que venham de fora – como a da música popular brasileira e também a da portuguesa, que ambos claramente amam. Talvez seja isso que a torna tão especial, com um segundo disco, Além das Horas, a confirmar a relevância do primeiro, Míope e o Arco-Íris. Da junção de um dos melhores guitarristas e de uma das melhores vocalistas do jazz nacional vem surgindo, pois, algo de particularmente notável, e isso porque se adotam várias tradições combinadas (pressente-se, por exemplo, o gosto de Pais pela leitura que o bebop fez do swing, a exemplo das interpretações ellingtonianas protagonizadas por Monk) na perspetiva de lhes dar um toque de "heresia".
Afonso Pais has a long history of playing with singers who, without exception, have caused him to stray a little from jazz. In partnership with Rita Maria, however, his feet remain firmly planted in the musical genre in which he feels most at home, despite the many influences from outside, including the Brazilian popular music that they both so clearly love. This combination of one of the best Portuguese jazz guitarists and one of the best singers leads to something quite remarkable, through their adoption of various jazz traditions combined in such a way as to afford them a hint of "heresy".
Quem quiser saber venha ouvir e ver
O nome de Afonso Pais está ligado à canção interpretada em português, em muitos dos exemplos cobrindo géneros musicais que nada ou muito pouco têm que ver com as origens jazzísticas do guitarrista e compositor. Ouvimo-lo com JP Simões, Edu Lobo, Ivan Lins, Rui Veloso, Camané e António Zambujo, e essas colaborações poderão mesmo ter ofuscado as que encetou com cantoras de jazz como Joana Machado, Beatriz Nunes, Joana Espadinha ou Luísa Sobral. Se para Pais o idioma musical não é o mais importante, a verdade é que a sua parceria com Rita Maria tomou proporções tais que se tornou na mais importante do percurso que vem seguindo, devolvendo-o ao âmbito do jazz. Daí, até, que depois de ambos terem um grupo a tocar atrás deles, acharam chegada a hora de concentrar tudo nas suas próprias pessoas. Em duo, é como se regressassem ao mais essencial das suas identidades.
O músico de Lisboa coloca a questão nestes termos: «Há para mim um propósito maior na expressão artística no qual acredito cada vez mais e que apela à integração de todos os desígnios criativos do músico instrumentista-compositor no seu trabalho autoral. Se uns optam por desenvolver vários projetos simultaneamente e em paralelo, tendendo a dividir o seu universo criativo pelos vários trabalhos, outros procuram explorar a cada momento a expressão mais representativa do que para si é o ponto de convergência de todas essas tendências e aspirações da imaginação, nesse ponto das suas vidas. Identifico-me mais com esta segunda forma de conceber, organizar e materializar o que faço musicalmente. As circunstâncias da minha aproximação a cada um desses cantores variaram muito», afirma.
E passa a especificar: «Com Rui Veloso, Camané e António Zambujo tive encontros pontuais. Com Ivan Lins fiz uma digressão com o seu grupo, tocando a sua música e contribuindo como solista improvisador. Com JP Simões gravei um CD em coautoria (Onde Mora o Mundo), tendo assinado a composição e tido a primeira experiência de conceber de raiz um disco de canções sem formato predefinido. Seguimos apenas as temáticas que ambos fomos decidindo. Edu Lobo participou no meu disco Subsequências, como um timbre vocal com assinatura que para mim representa o epítome da canção sofisticada que não cabe num estilo. É um compositor cuja impressão digital está igualmente na "cantautoria" e na escrita musical. Com Joana Machado, Joana Espadinha, Luísa Sobral, Beatriz Nunes trabalhei no passado, e têm todas na voz e na interpretação o seu modo de comunicar de modo efetivo os respetivos mundos interiores.» Ou seja, Afonso Pais não acha que seja «possível estabelecer um pressuposto único para todas as colaborações, dada a diversidade de circunstâncias», pelo que tais diferenças vão muito mais além do que as que distinguem o jazz de outras músicas.
Curiosamente, não é só o jazz que une Afonso Pais e Rita Maria – também a música popular brasileira é uma paixão comum. «Esse é um elo de cumplicidade e um ponto de partilha. Não diria, porém, que viabiliza a nossa parceria mais do que qualquer outro entre nós, sendo que muitos dos nossos elos e pontos de partilha não estão no domínio do enumerável, tal como a cumplicidade e a empatia entre pessoas não são explicáveis mesmo quando se somam todos os elementos identificáveis que possam contribuir para o seu bom efeito», explica o primeiro. Mais uma vez, a razão de ser das coisas não está na linguagem musical que se escolhe, mas em algo de mais profundo: «A música que fazemos juntos acontece de formas inesperadas e imprevisíveis, até para nós. A sensação que temos é que o contributo de cada um se transforma em algo que não deriva diretamente do que lá pusemos. Sempre foi assim, e temos chegado à conclusão de que os resultados teimam em nos surpreender, razão pela qual decidimos avançar com o duo. Assim, podemos explorar e perceber melhor esta orgânica, esta aparente incansabilidade, esta metamorfose que acontecem quando criamos música em conjunto.»
O povo tem outra designação para essa dita "orgânica": química. Por detrás da música está um fator que é mais importante do que a própria música e esse fator é a afinidade humana, o afeto. Nesse aspeto, as águas navegadas pela dupla não são propriamente as do jazz. Comenta Pais: «Há uma forma muito norte-americana e própria do jazz que joga com a coesão dos grupos musicais como consequência de uma polarização de todos por causas sociais partilhadas ou em resultado de questões sociais que geram discriminação e por isso unem grupos de pessoas. Isto trouxe, em tempos idos da evolução deste estilo musical, um apuramento do equilíbrio virtuoso entre a voz única do indivíduo e o impacto inigualável do trabalho coletivo. Na Europa dos tempos modernos, vejo que as coisas funcionam ao contrário: a seleção das pessoas faz-se de acordo com uma polarização que é fruto de atrações humanas individuais, do intelecto, da ideia do que pode ser e ainda não é, da compatibilidade. Converso muitas vezes com a Rita sobre os rumos, as estratégias ou os imaginários evocados por cada tema que tocamos, e também em que medida nos importa que certos momentos ou músicas continuem sem explicação ou planeamento. Ora, estes processos são próprios e exclusivos do entendimento pessoal que temos um com o outro e não tenho dúvida de que são tanto a causa quanto a consequência do entendimento musical que conseguimos.»
Ainda assim, e como não podia deixar de ser, antes da relação a dois que faz do duo de Afonso Pais e Rita Maria o que é, há a relação que cada um deles mantém consigo próprio. No caso de Pais, e porque este intervém simultaneamente como instrumentista e como compositor, essa relação pode ser muito complexa. «O instrumento e a composição ocupam dois espaços distintos em mim. Durante anos fui criando plataformas musicais para destacar as minhas capacidades mais fortes como guitarrista improvisador, achando que essas simples plataformas eram temas. Por outro lado, escrevi temas com a guitarra que desdenhavam o instrumento em que tinham sido compostas. Tanto num caso como no outro não era invulgar descobrir isto só depois de tocar as peças. Revelava de forma desintegrada, e à vez, as facetas de guitarrista improvisador e de compositor. Foram surgindo gradualmente composições que, sem serem traçadas com esse propósito, me apresentavam contextos de improvisação frescos e desafiantes que desconhecia até então, os quais nunca me lembraria de criar por via direta. Neste ponto de viragem voltei a abraçar a guitarra como aliada nos processos de escrita, e fui-me sentindo cada vez mais capaz de lidar com as propostas musicais do instrumento como preciosas e passíveis de serem aproveitadas para originar composições», confessa Pais.
O álbum agora em apresentação, Além das Horas é o feliz produto desta nova fase: «Neste disco essa integração satisfaz-me plenamente, sem sentir que existam compromissos do compositor ou do guitarrista em mim. Aliás, acho que cada vez mais os rumos autónomos do compositor e do instrumentista se afirmam essenciais à minha expressão artística.» E isto apesar de ser o seu lado de guitarrista que mais tem assombrado os amantes do jazz. Afonso Pais é um dos nossos melhores com esse instrumento, associando um bom som, uma técnica exímia e boas ideias. O que ele diz a propósito: «O "bom som" é um elogio que tento encaixar sempre com espírito analítico… O som que procuro na guitarra não é só um timbre específico, a expressividade que possa dar a determinada nota ou algo de índole técnica sequer, mas sim a minha voz mais permanente. Independentemente da estória a contar, do projeto a desvelar, o som que me apresenta a quem ouve é o veículo da mensagem que quero fazer chegar. Música é comunicação, e para mim ter um bom som é poder ser identificado pela maneira como chego aos ouvidos das pessoas, ainda antes de ter dito seja o que for musicalmente. Numa segunda análise, som é técnica também, mas técnica não é só som, e por isso tendo a lembrar-me das outras componentes da técnica só quando me deparo com algum obstáculo a superar. A manutenção da técnica na guitarra é o que faço quase diariamente como primeiro exercício de aquecimento repetitivo, nomeadamente para manter uma boa forma no tempo de resposta dos dedos ao comando da ideia que ocorra.»
Pais não tem «por hábito racionalizar ou tornar conscientes os mecanismos da improvisação», mas precisa de os ter presentes para «usar várias formas de contradizer ou de não aceitar as primeiras ideias que surjam em determinado contexto». «Procuro distanciar-me como improvisador da clausura de algum estilo ou estética específica. Sempre investi o meu tempo em tentar o mais possível "destilar" aquilo que de fresco, assimétrico e extra estilístico existe nos discursos musicais dos improvisadores que mais admiro: ser capaz de surpreender com alguma ideia é um elixir contra a estagnação da criatividade, independentemente do background de que o músico venha. Como guitarrista tento transmitir o mais possível o quão encantador é para mim poder acordar todos os dias com música improvável e não solicitada a acontecer na minha imaginação. Continuarei a trabalhar para que mais e mais desse imaginário involuntário encontre caminho rumo aos discos e aos concertos que faço», argumenta.
Em relação aos cânones, Afonso Pais está de acordo com o brasileiro Thiago Amud quando este refere que todo o legado necessita de «um certo abuso, uma dose de heresia»: «Dou por mim, muitas vezes, a reouvir discos e a reiterar a minha paixão pela música que contêm, mas como músico sinto que a forma como me inspiram merece que eu perpetue a sua permanência na minha medida, transformando-os e subvertendo o seu universo supostamente intocável com um sentido de propriedade próprio de quem lida com tão grande entrega, e por isso se acha merecedor de tal poder de herege.» O que até confirma o modo nada passivo como entende a tradição, e para começar a do jazz. Muito particularmente, a do bebop, um bebop com os ouvidos virados para o songbook dos tempos do swing ou mesmo de antes: «O bop foi o estilo musical do qual parti e no qual encontrei uma primeira satisfação expressiva como improvisador. Admiro a forma como, nessa linguagem virtuosa e complexa, algumas mentes criativas brilhantes conseguiram desconstruir, recriar e apresentar sensualmente toda a história dos grandes compositores do cancioneiro norte-americano das décadas anteriores (Cole Porter, Irving Berlin, Jerome Kern, George Gershwin, Kurt Weill, Harold Arlen…). Os melhores improvisos dessa era são como que uma reciclagem do que de melhor tinha sido feito por esses autores, tornando possível para todos os que viriam depois este diálogo interessante e frutífero entre composição e improviso.»
Nada disto surge na música que Afonso Pais faz com Rita Maria como um artifício. As canções que vamos ouvir soam muito naturalmente. A perspetiva que o músico tem da naturalidade na arte dos sons está mesmo enraizada numa particular visão da natureza, tal como ficou explicitado pelo CD Terra Concreta, gravado em diversos parques naturais. «Sim, esse disco brincava já um pouco com a vertente despojada e até terapêutica que vem conduzindo a forma como me vou descobrindo e expondo, musicalmente e não só. É verdade que o gosto pela natureza, que me acompanha desde sempre, pontua também o meu interesse pela criação de contextos em que a ordem "natural" das coisas musicais promova não usar artifícios. Creio que esse afastamento do que é mais habitual e seguro não só replica a experiência que extraio do meu contacto com o meio natural, como na música que faço estimula a procura de um ponto de simplificação e síntese tais que a sua matriz crua e não ornamentada sejam o bastante para que cada pessoa possa encontrar o lugar pretendido na leitura emocional da música, sem interferências ou sugestões subliminares de audição», conta Pais.
Bem entendido, tudo isto acontece sob o signo da liberdade, e designadamente «a liberdade de me tornar cada vez mais capaz como comunicador da minha mensagem musical, de simplificar e tornar tão nítida quanto possível a minha relação com os outros, de procurar estar predisposto a olhar em volta com curiosidade, sempre». Com Rita Maria, é a liberdade que se coloca em ação. E que liberdade é, especificamente, essa? «Quem quiser saber venha ouvir e ver», remata ele.
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)