Ricardo Toscano e João Paulo Esteves da Silva não podiam ser músicos mais diferentes, ainda que pertençam ambos à cena nacional do jazz. O jovem saxofonista está totalmente virado para a herança afro-americana deste género musical, tanto em termos estilísticos (a sua adesão ao legado do bop e do hard bop) como nos mais profundamente estéticos, verificáveis inclusive na sonoridade nova-iorquina do seu alto. O pianista tem procurado dar ao jazz uma identidade portuguesa, recorrendo ao repertório da tradição rural do País ou a velhos temas sefarditas que reflitam as componentes árabes e judaicas que marcam a nossa cultura. Um encontro entre os dois não é, pois, algo de propriamente óbvio, ainda que possa ser explicado pela admiração que Toscano dedica aos tratamentos da «harmonia à portuguesa» (expressão por si utilizada) por parte de Esteves da Silva e pelo sempre renovado interesse que este dirige às raízes do jazz, tão bem representadas pelo seu mais jovem parceiro.
Este novo duo tem um fator extra de interesse: reúne dois músicos de capacidades muito acima do normal. Ricardo Toscano vem sendo apontado como um "menino-prodígio" do saxofone, tendo os seus estudos sido realizados, em regime de sobredotado, na Escola Superior de Música de Lisboa, depois de ter passado pela Escola de Jazz Luís Villas-Boas.
João Paulo Esteves da Silva fez o Curso Superior de Piano com a nota máxima e partiu depois para o Conservatoire de Rueil-Malmaison, em Paris, tendo aí sido agraciado com a Medaille d'Or, o Prix Jacques Dupont, o Prix d'Excellence e o Prix de Perfectionement.
Se o primeiro está em fulgurante início de carreira, aguardando-se para breve o lançamento do seu primeiro álbum (um duplo em que também se dará a conhecer como compositor), o outro já tem um percurso de grande relevo, com o CD a solo Memórias de Quem como o ponto mais alto de uma carreira de sucessos somados.
Despite both belonging to the national jazz scene, Ricardo Toscano (sax) and João Paulo Esteves da Silva (piano) could not be more dissimilar as musicians. The former is stylistically and aesthetically linked to jazz's Afro-American legacy, the latter to Portugal's rural tradition and the old Sephardic music. Toscano, the new "wonder-kid" on the saxophone, is just starting out and shortly to release his first album; Esteves da Silva already enjoys a long and distinguished career. Their playing together as a duo is therefore far from obvious, but they are both undeniably exceptional musicians.
Do improvável encontro entre um pugilista e um poeta
É o duo que menos esperávamos que viesse a surgir na cena nacional do jazz. Ricardo Toscano pratica um jazz alinhado pelos moldes norte-americanos e João Paulo Esteves da Silva é europeísta na sua forma de tocar e também um dos inventores, senão o principal inventor, disso a que se chama "jazz português", terminologia que indica não o sítio onde é criado, mas um estilo propriamente dito. Junta-os o jazz, obviamente, mas será a música deste encontro que já está planeado prosseguir um jazz de compromisso, o compromisso possível entre um músico que também é pugilista e outro que também é poeta? Não necessariamente, mas venham daí e fiquem a conhecer as motivações deste improvável projeto que é também a promessa de algo muito, muito especial…
A ideia partiu de Toscano: «Sempre fui um admirador do João Paulo e mais tarde tive a oportunidade de tocar com ele no Septeto de Tomás Pimentel. Demo-nos bem e decidi convidá-lo para fazermos esta experiência.» Com que perspetivas? «O que nos junta é o espírito do jazz. Para mim, este é comum a todas as vertentes jazzísticas (americano, europeu, latino, etc.). Trata-se da honestidade com que se toca, de tentar ser o mais honesto possível, tentar abandonar portos seguros, tentar… tentar mesmo!» O saxofonista sabe, inclusive, algo que a maior parte dos fãs do mais velho pianista ignora: «O João é um craque a tocar standards. Aliás, ainda não toquei com nenhum pianista português que conhecesse tanto a música de Thelonious Monk como ele.» O que quer dizer que Esteves da Silva pode ser musicalmente português e europeu, mas domina como poucos a vernacularidade afro-americana deste género musical.
Acrescenta João Paulo: «O que senti na primeira vez que ouvi o Ricardo foi… querer tocar com ele. Estas coisas vão acontecendo independentemente de todas as demais considerações, inclusive as de estilo, estética, ser jazz ou não jazz, que podem ser úteis a posteriori mas que, acredite-se, não passam pela cabeça quando se sente essa "vontade de tocar juntos".» Mas porquê um duo e não outra formação maior? «Virá a seu tempo. Temos agendados dois concertos no Hot Clube em quarteto com Mário Franco e João Pereira, lá mais para o Verão. Tudo isto se prende com as circunstâncias: aconteceu que participámos, o Ricardo e eu, num concerto de homenagem a José Luís Tinoco em que tínhamos um curto momento a dois. A sensação de entendimento musical foi tão intensa que, pouco depois (ele tomou a iniciativa) formámos este duo.»
Por aquilo que acima se referiu, não surpreende que uma parte do repertório a apresentar neste concerto na Culturgest seja constituída por standards. Sendo Esteves da Silva o "especialista" referido por Toscano, e este um músico que aprimorou a criação de arranjos e versões de temas de figuras históricas do jazz, não faria sentido que fosse de outro modo. Mas não ficarão por aí: haverá composições originais de ambos e até momentos de improvisação totalmente livre. Revela João Paulo: «No alinhamento poderão estar Round Midnight ou In Your Own Sweet Way como peças que vamos estrear com este duo e improvisações sem outro programa que não sejam as personalidades em jogo. Tenho até notado uma tendência para o tempo de livre-improvisação aumentar de concerto para concerto.» Em todas essas abordagens será inevitável, igualmente, que fique em evidência a circunstância de ambos os intervenientes serem instrumentistas sobredotados e virtuosos, com capacidades superiores ao que é habitual encontrar. Toscano foi recebido como um "menino-prodígio" nos circuitos do jazz, quando ainda era adolescente, e Esteves da Silva ganhou vários prémios académicos de excelência. O concerto não vai ser, no entanto, um exercício de exibicionismo. Esclarece o jovem do saxofone alto: «Nada disso. As maiores capacidades que eu tentarei exibir serão a generosidade e a honestidade. Com o João Paulo só podia ser assim.»
Esteves da Silva vê a questão de modo mais construído: «Se o virtuosismo estiver ao serviço da música, esta agradece e o mundo melhora, ainda que efemeramente. Aliás, tratando-se de música, na sua maior parte, criada em tempo real, o virtuosismo consiste tão-somente no estar à altura dos acontecimentos que forem surgindo. Aqui sim, está o risco, e é aqui que quem arrisca pode falhar, mas será por falta e não por excesso de virtuosismo. Não vamos exibir-nos e sim fazer música, simplesmente. De qualquer maneira, mais vale uma exibição de capacidades do que uma exibição de incapacidades (risos).» Neste contexto, e ainda que haja na história do jazz uma cartografia das combinações entre um saxofone e um piano, a dupla decidiu-se a esta aventura sem buscar referências condutoras. O que quer dizer que estarão mais ocupados em procurar caminhos por si mesmos do que em fazerem malabarismos com o aproveitamento dos já abertos. Afiança Toscano: «O nosso objetivo é apenas tentar fundir os nossos sons de forma a explorarmos a nossa musicalidade.»
«Parto para isto sem pensar em historial algum. Sei que há projetos musicais que se constroem conscientemente sobre modelos, com pensamentos do género: deixa cá formar um grupo que seja algo entre os Pink Floyd e os Soft Machine. Nada pode estar mais longe da minha maneira de funcionar. É claro que tenho consciência de não ser o primeiro de cada vez que toco piano, seja a solo ou em duo ou o que for. Não sou o primeiro em nada. O que está por detrás da maior parte dos meus projetos musicais é a atitude de "deixar acontecer", de "deixar vir a música". Depois, comentando e analisando o acontecido, será sempre possível, e até, por vezes, interessante, enquadrar historicamente», comenta o autor do emblemático álbum Memórias de Quem. Ora, porque existe tal predisposição, poderão até acontecer coisas sobre o palco que nos surpreendam, pelo facto de nos trocarem as voltas quanto ao que julgamos saber sobre estes dois magníficos. Diz Toscano: «Olhem que existe um Ricardo lírico e que o João Paulo vai sincopar muito seriamente!» O seu parceiro reforça esta ideia: «Também tenho o ritmo como um elemento muitíssimo importante e considero o Ricardo um improvisador extremamente melódico e lírico (no sentido de "expressivo", que é o que se costuma querer dizer por lírico). Prevejo que possa haver de tudo isso ou, então, nada disso, em ambos os casos com a eventualidade de a música ser indescritivelmente bela.»
Se aquele que é, para muitos, o melhor pianista de jazz em Portugal tem a poesia como segunda paixão, e se o saxofonista que renovou a força e deu frescura ao nosso mainstream escolheu o boxe como segunda atividade, o que tal indique sobre os seus respetivos perfis psicomusicais pode levar-nos ao engano. «A poesia é uma espécie de pugilismo, muito sublimado, sim, mas que não esconde a sua origem. Os versos, em todas as tradições, celebram os golpes, reproduzem visualmente os golpes: seja dos guerreiros, do destino, do amor, do tempo. O boxe será quase poesia concreta, baforada de verdade violenta. Velhos amigos, portanto, a poesia e o boxe, ainda que não o confessem publicamente», anuncia João Paulo. Curiosamente, esta insuspeita ligação levou-os a conversarem mais sobre pugilismo do que sobre rimas, mas Toscano está decidido a entrar pelo mundo das letras. «O meu boxe só deverá estar presente em situações mais rítmicas. O swing conduz-me a ele, não há nada a fazer», elucida.
Há entre estas singulares figuras do jazz "cá de casa" mais do que as diferenças (que não o são assim tanto, como verificamos) decorrentes de um ser pugilista e o outro ser poeta – há igualmente uma diferença geracional. Seria de esperar que o mais novo fosse mais "moderno", mas as aparências mostram que a relação do saxofonista com a tradição do jazz é mais forte do que a do cinquentão pianista / acordeonista. João Paulo acha que, também neste aspeto, não há qualquer tipo de determinismo: «Não creio que o Ricardo se contente com ser um puro jazzman, se é que os há, e a prova disso é querer tocar comigo.» De qualquer forma, vem de João Paulo Esteves da Silva a maior dose de irreverência neste tête-à-tête musical e Toscano confirma-o sem hesitações: «Sempre que toco com ele sinto que levo uma tareia. Sinto que estou a aprender coisas novas.» No fundo, pouco haveria que um nunca fizesse do que o outro faz. Toscano «nunca tocaria acordeão e nunca seria capaz de traduzir Hebraico» (explicação: Esteves da Silva tem um enorme fascínio pela cultura sefardita, o que tem tido tradução frequente na sua música) e João Paulo deixa para o seu amigo «o ser Ricardo, o fazer exatamente o que faz e tanto agrado provoca». Nada como a improbabilidade, em suma, para tornar o que possa ser possível numa arte. Boxe poético, chamemos-lhe.
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)