Num tempo de misturas de linguagens musicais, o trio Ballrogg não só está em linha com a tendência geral como leva esta a desfechos que, expostos em papel, parecem improváveis. A música tocada por Klaus Ellerhusen Holm, Roger Arntzen e Ivar Grydeland (neste concerto substituído por David Stackenäs) pode ser descrita como a combinação do tipo de jazz elaborado, mas aberto, cunhado por figuras históricas como Eric Dolphy e Paul Bley, com a new music não-linear e indeterminista de um Morton Feldman e aquilo a que se convencionou chamar de Americana, associando em si folk, country e blues.
Todas estas referências vêm do outro lado do Atlântico, mas juntas, e da maneira como as ouvimos, têm o traço distintivo da música criativa que nos dias de hoje está a ser praticada na Escandinávia – tanto assim que ninguém mais no mundo poderia fazer com que algo de tão bizarro resultasse tão natural. Não surpreende, aliás, que um dos discos deste grupo tenha como título Swedish Country. Mas há mais nos temas dos Ballrogg para além destas coordenadas, evitando a formulação de uma simples receita pronta a ser indefinidamente reproduzida: algumas situações musicais têm um formato neoclássico, lembrando os Clogs, e outras ganham uma dimensão eletroacústica com características ambientais e de paisagismo sonoro que nos remete para Philip Jeck.
Ballrogg are a trio whose music seems to follow the general trends, but leads to unlikely outcomes, being best described as a mixture of elaborate, but open jazz and the new music known as Americana, associating folk, country and blues. All of these references come from the other side of the Atlantic, but together, when played in this way, it has the distinctive sound of modern-day Scandinavian creative music. Not surprising therefore that one of their albums has the name of Swedish Country. Some of their music is reminiscent of the Clogs, while at other times they sound just like Philip Jeck.
Americana made in Norway
Nos primeiros anos de Ballrogg, o projeto era um duo entre os clarinetes e o saxofone alto de Klaus Ellerhusen Holm e o contrabaixo de Roger Arntzen. A música, essa, fazia uma tangente entre o jazz progressivo e sofisticado de Eric Dolphy e Jimmy Giuffre e a new music não-linear, indeterminista, de Morton Feldman. A fórmula não satisfazia, porém, os propósitos dos dois músicos noruegueses e daí o convite a Ivar Grydelan para se formar um trio, que para além de acrescentar as sonoridades particulares da guitarra pedal steel, do banjo e da eletrónica, ampliou as coordenadas para a folk e o country & western. Daí, igualmente, o surgimento de uma outra versão do grupo, com David Stackenäs em vez de Grydeland, a sua guitarra denunciando um emaranhado de raízes na linguagem dos blues, os do Delta do Mississippi. É esta que vamos ouvir na Culturgest, mais "limpa" (leia-se: crua), mais acústica e muito provavelmente mais jazzística também.
«Mudar de duo para trio fez toda a diferença», admite Holm. «Quando éramos uma dupla, os nossos papéis podiam muitas vezes tornar-se fixos, dado que a música estava sempre sustentada em composições. Adicionar um terceiro membro deu-nos uma maior liberdade individual e, obviamente, alargou a nossa paleta sonora. O Ivar e o David têm formas de tocar distintas. Nunca sabemos o que o primeiro poderá fazer a seguir. Vai buscar inspiração à música japonesa e isso quer dizer que as coisas podem demorar algum tempo a instalar-se e a ter desenvolvimento. O David tem uma abordagem muito musical, direta e pluralista, com projetos que vão do jazz à livre-improvisação mais minimalista. É ótimo poder trabalhar com músicos que, como ele, têm a capacidade de tocar nos mais diferentes contextos, sobretudo quando os identificamos logo, pelo facto de terem uma voz tão individualizada», acrescenta.
São tantos os ingredientes que encontramos nos temas reunidos no último álbum dos Ballrogg, Abaft the Beam, que parece estarmos perante uma nova expressão musical, e isso apesar de reconhecermos os vocabulários utilizados. «Não sei se estaremos a reinventar alguma coisa. Procuramos a nossa própria forma de apresentar conteúdos musicais bem conhecidos, de certo modo em linha com o que se vai fazendo na Noruega e na Suécia. Há uma longa tradição desta corrente de pensamento na Noruega, e esta recua até ao final da década de 1960. Não temos a mesma ligação com a música dos Estados Unidos que existe na Dinamarca, pelo que vamos experimentando e descobrindo por nós mesmos. Talvez seja uma maneira de juntar diferentes elementos e verificar se a mistura funciona ou não. Às vezes, não. De todo…», explica-se ainda o porta-voz desta banda sui-generis e seu principal compositor.
Quando tudo cola e faz sentido, isso acontece «muito frequentemente por acaso», diz um humilde Klaus Ellerhusen Holm. E dá um exemplo: «No nosso novo disco utilizamos um pouco de drum machine. Adquiri recentemente uma Roland TR-77 de 1972 porque os sons pré-programados eram fantásticos. Tentámos incluí-la na música dos Ballrogg algumas vezes mas não gostámos dos resultados. Depois, o Ivar importou os samples dos sons de bateria num software aleatório e ligou o programa, via computador, a pequenas colunas. Deu certo e acabámos por usar isso no CD e levamos esse recurso para os concertos.» Não será, agora, o caso.
As propostas do trio parecem improvisadas, tanto assim que ficamos na dúvida quando surgem passagens que podem indicar o contrário. O esclarecimento: «Temos composições, sim, mas a nossa música é um fórum aberto. Temos um processo muito democrático. Veja-se o caso do Ivar: ele toca apenas 50% do que está escrito e atira-se ao resto com a maior das liberdades. É um bom procedimento.» Algumas partituras dos Ballrogg podem ser mais «vagas» do que outras, mas são claras no tipo de emolduramento pretendido. Não limitam as performances ou a expressão do momento porque seguem um princípio: «Procuramos apagar as linhas de separação entre o que é improvisado e o que é escrito. Em bastantes ocasiões, definimos antecipadamente o território musical em que queremos improvisar, escolhendo à partida mais o que não desejamos fazer do que aquilo que faremos.»
Regra geral, mas não absoluta, equacionam-se elementos da chamada música improvisada com certos aspetos do formato tradicional da canção e investiga-se «a fricção que pode ocorrer como consequência». Por outras palavras: «Vamos à nossa bagagem na música improvisada e no free jazz e aplicamos toda essa experiência e essa formação na folk.» Só que nenhumas palavras chegam para perceber a amplitude daquilo que são os Ballrogg, um dos projetos mais originais da música criativa deste nosso tempo em que a originalidade já não parece possível. Além de tudo o mais, demonstrando que, a partir de discursos já mais do que estabelecidos, há quem consiga inventar novas soluções.
Em termos idiomáticos, os clássicos rótulos "fusão", "colagem" ou world music não servem para descrever o que se passa num disco ou numa atuação dos Ballrogg. Diz Holm: «Se houver quem ache que esses autocolantes servem, está ok para nós, mas tenho a esperança de que o nosso som seja mais do que a combinação de diversos géneros. A motivação está em tocar música que nos interesse, sem nos importarmos demasiado sobre se se trata de um crossover entre folk e jazz. Não pretendemos fazer um statement específico, apenas seguir o que nos manda o instinto e sermos fiéis a nós mesmos. Como ultimamente têm aparecido bastantes grupos de free jazz barulhento na Noruega e na Suécia, fazemos questão em percorrer o caminho inverso, com uma abordagem mais camerística.»
A preferência por uma entrega acústica é, no entanto, comum com essa reemergência do free segundo o entendimento norte-europeu. «Gostamos da combinação de instrumentos acústicos com eletrónica, mas a nossa música sempre esteve alicerçada sobre essa condição acústica. Começámos como um duo acústico e fomos gradualmente incorporando outros ingredientes, mas o foco tem estado sempre aí. Tentámos diferentes setups no que respeita à amplificação e à incorporação de efeitos, mas nunca nos sentimos confortáveis. Queremos ter a possibilidade de responder mais rapidamente às mudanças da música, sem que nos preocupemos com outros fatores. Incluir mais decididamente a eletrónica poderia ser um processo cansativo e levar muitos anos a dominar. Admiramos os músicos que gerem bem essa prática, mas preferimos o caminho que tomámos. É por isso que gravamos ao primeiro take, quase sem edição de som, e ao vivo, como se estivéssemos no palco», argumenta Holm.
Pois é no palco que os vamos ouvir, e sem dúvida que é essa a melhor forma de experienciar o mundo tal como os Ballrogg o ouvem. Americana made in Norway, em pleno coração de Lisboa.
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)