Ao cabo de 20 anos de carreira, grande parte dela trabalhando em conjunto com Dmitri de Perrot, o suíço Martin Zimmermann, formado pelo Centre National des Arts du Cirque, cria, em 2014, o seu primeiro (até agora único) espetáculo a solo, este extraordinário Hallo.
Martin forma um personagem com um corpo de boneco articulado e a agilidade de um contorcionista, um tipo ingénuo e desastrado que faz rir sem querer, que mora numa pequena caixa de madeira e sai dela para entrar num cenário que lembra uma montra de loja.
O cenário, e os objetos vários que nele vão surgindo, têm vida própria e passam o tempo a pregar-lhe partidas, colocando-o em situações embaraçantes, desconfortáveis e divertidas, de onde dificilmente sai. Mas sai, porque a sua destreza ingénua é bastante para triunfar. Há um bocadinho de cenário que frequentemente se ri do personagem, amesquinhando-o. Ele faz de conta que não percebe.
O espetáculo resulta dos choques múltiplos entre o homem e as suas diversas personalidades, ou aparências, e o cenário e adereços. A esses personagens por que o artista se multiplica, acrescem outros que são extensão do seu corpo, representados por um manequim, jogos de espelhos, ou mesmo pela breve aparição de um duplo. Martin procurou dar vida às múltiplas maneiras de sermos nós próprios. Com a sua dramaturgista, que com ele concebeu o espetáculo, tentou "desenhar com delicadeza o esboço de uma vida".
Hallo (Olá) é a única palavra que se ouve durante todo o espetáculo e ainda assim, só por três vezes. Para chamar a atenção de alguém que não se sabe quem é. Gostávamos que fossem atraídos por esse chamamento, porque verão coisa que nunca viram, que está entre o céu e a terra, entre o sono e a realidade, entre a fantasia e a vida.
In 2014, after a twenty-year career, the Swiss performer Martin Zimmermann created this hilarious Hallo. Martin forms a naïve, clumsy character, with the articulated body of a doll and the agility of a contortionist, who lives in a small wooden box. The objects around him have a life of their own and place him in some uncomfortable and embarrassing scrapes, which he always manages to get out of. Martin has sought to give life to our multiple ways of being ourselves, in an unprecedented show, between heaven and earth, dream and reality, fantasy and life.
Não procuro lembrar-me.
Renuncio a explorar as pistas e a acumular informações na esperança de melhor compreender o mundo. Não sou um descodificador.
Deixo de procurar saber o que o outro pensa.
Nunca mais me orientarei a partir do meu quadro de referências e deixarei de partir à procura do lugar ideal.
Já não quero funcionar.
Suporto ter medo que o céu me cai em cima da cabeça e me enterre sob o meu peso.
Abandono o receio de cair sempre dentro dos mesmos buracos.
Aceito não poder ser eu próprio e permanecer incompreendido.
Confronto-me com a confusão.
Não conseguirei transformar um teto para que se torne um chão.
Não posso voar*.
Espero que os objetos que me rodeiam venham ao meu encontro.
Deixo de ser o meu próprio guarda.
Martin Zimmermann, Zurique, 2014
* Voler, em francês, que também quer dizer roubar.
Martin Zimmermann, artista do movimento, palhaço sarcástico e desenrasca genial, cria pela primeira vez na sua carreira um solo no qual tenta domesticar os seus fantasmas mais tenazes.
Para a sua nova criação Martin Zimmermann inventa um espaço que lembra uma montra de um grande armazém no qual se coloca a si próprio em cena com o seu duplo trágico-cómico, confrontado com o desejo de se tornar naquele que julga ser. O cenário revela-se mais animado do que parece; o ator deve então fazer malabarismos com a gravidade, os objetos que o rodeiam vêm ao seu encontro e a magia opera. Hallo (Olá), diz-nos Martin Zimmermann. Ele pisa os palcos há quase 20 anos, mas continua a atuar com o mesmo entusiasmo.
Ao princípio, a sua profissão era de decorador de grandes armazéns, depois passou da moldura da vitrina à moldura do palco, onde pode dar corpo às personagens que o habitam e o fascinam. No seu teatro de acasos, tenta mil vezes libertar-se de situações inverosímeis, confunde-se com o seu próprio reflexo e dobra-se como se quisesse imitar o seu cenário. Uma outra linguagem emerge do seu corpo um pouco usado por anos de palco, mas de onde outra urgência se desprende. O artista, vítima dos seus fantasmas, revela-se com um humor devastador, desconcertante de justeza.
Depois de 20 anos de palco e de peças de grupo, cria um solo… Enfim?
Martin Zimmermann (MZ): O desejo existia, mas faltava a ocasião. Nestes últimos anos criei quase sempre em colaboração, principalmente com Dimitri de Perrot, privilegiando peças de grupo. Cheguei a um momento da minha carreira em que se me tornou evidente fazer um solo no qual eu fosse simultaneamente encenador e intérprete. Era uma decisão difícil de tomar porque sabia que ia repercutir-se sobre mim próprio. Tive por isso o cuidado de me rodear de colaboradores preciosos que me apoiaram e me ajudaram a realizar esta peça.
Forjou um "personagem". Quem é ele?
MZ: Quando olho para as pessoas à minha volta não consigo deixar de ver personagens. Cada pessoa é uma personagem e cada personagem me intriga. Para Hallo procurei dar vida às múltiplas maneiras de se ser. Segundo o momento da nossa via, o nosso estado ou o ambiente à nossa volta, oscilamos continuamente de uma variante de nós próprios para outra. Finalmente é impossível saber quem é que somos de verdade. Não é, de resto, coisa muito importante. No máximo, o que podemos fazer é tentar acomodar-nos a essas diferentes variantes. No palco represento, exagero, incorporo, transformo, desencaminho, exprimo estas múltiplas maneiras de ser eu.
Hallo desenrola-se numa montra de loja… É uma metáfora do próprio ato de encenar?
MZ: De facto eu ponho em cena o corpo com o cenário. Um não funciona sem o outro: os limites e os perigos que uma cenografia móvel impõe são-me necessários para fazer com que o corpo exista num espaço teatral. É o entrechocar entre o corpo, o cenário e os objetos que faz com que uma peça nasça. Para Hallo trabalhei a partir de situações inconfortáveis que me obrigam a tentar libertar-me delas, o que cria cenas trágico-cómicas. Esta cenografia está ligada à minha primeira profissão: decorador de montras de um grande armazém. Esta montra, não sendo realista, evoca o mundo do consumo, da moda, ou ainda os temas da aparência e do desejo de reconhecimento. Mas principalmente reenvia para questões essenciais tais como: quem sou eu no reflexo que vejo de mim? O que vejo é a verdade? Sou outro?
Os seus espetáculos observam os humanos enquanto vivem, nos seus empreendimentos irrisórios. Parece que o absurdo está sempre a espreitar…
MZ: Sinto que nunca compreendo totalmente os seres humanos, incluindo eu próprio. A existência é, para mim, absurda. Não é um sentimento negativo nem desprovido de paixão. Acho as coisas absurdas incrivelmente interessantes e frequentemente engraçadas! Por exemplo, o circo, em si, é bastante absurdo porque se trata sempre da mesma coisa: a sobrevivência. Mas esta arte fascina-me e inspira-me imenso, o que se vê no meu trabalho: desenvolvo uma espécie de poesia que vai do circo ao teatro.
Como se faz para fazer nascer essa poesia?
MZ: O processo de criação dura entre 5 e 8 meses. Apesar da minha experiência dos últimos 20 anos, cada criação é uma nova aventura. Parto sempre de uma página em branco. A competência adquirida através dos meus estudos de decoração e de circo deu-me ferramentas para criar espetáculos. Depois, são muitos anos de trabalho para tentar compreender. O processo de criação continua a ser, para mim, um grande mistério. Com a dramaturgista Sabine Geistlich, não procuramos uma dramaturgia linear, mas antes desenvolver uma reflexão sobre o ser humano, sem moral, nem conclusão. Tentamos desenhar, com delicadeza, o esboço de uma vida.
Entrevista realizada por Gwénola David, publicada em outubro de 2014 em O circo contemporâneo em França, suplemento de La Terasse.
Martin Zimmermann
Martin Zimmermann nasceu em 1970 e cresceu em Wildberg, uma pequena aldeia na Suíça. Depois dos seus estudos como decorador, formou-se no Centre National des Arts du Cirque (C.N.A.C.) em França. Desde que voltou para a Suíça, em 1998, iniciou o seu trabalho de coreógrafo e de encenador. Cria principalmente com o compositor e encenador Dimitri de Perrot, cofundador e codiretor artístico de Zimmermann & Perrot. As suas peças são apresentadas no mundo inteiro. Muitas delas foram criadas no Théâtre de Vidy (Lausanne): Hoi (2001), Gaff Aff (2006), Öper Öpis (2008), Hans was Heiri (2012) e Hallo (2014).
Alguns comentários na Imprensa estrangeira sobre Hallo:
"A utilização que Zimmermann faz do seu corpo é fenomenal."
Hugues Le Tanneur, Libération
"Hallo transporta nas suas asas os espectadores para longe, muito longe do que é normal numa noite de teatro."
Ariane Bavelier, Le Figaro
"O artista de teatro-físico Martin Zimmermann não mastiga o cenário. Mas o cenário quase que chega a mastigá-lo."
Alexis Soloski, The New York Times
"Standing Ovation para Hallo de Martin Zimmermann em Nova Iorque."
kulturtipp
"Como encenador e intérprete, faz neste espetáculo um trabalho de relojoeiro, cheio de humor e profundidade."
Marie Soyeux, Les inRockuptibles
"Martin Zimmermann ganha a aposta louca de animar o inanimado."
Fabienne Arvers, RTS_Radio Télévision Suisse
"Como Magritte, pintor do surreal, Martin Zimmermann faz explodir os códigos da realidade."
Corinne Jaquiéry, La Terrasse