O sarcasmo e a mistificação são recursos mais literários e dramatúrgicos do que propriamente musicais, sobretudo quando a música em causa não tem voz nem letras, mas assim não acontece com o projeto The Rite of Trio: se essa imagem surge logo na forma como o grupo é apresentado, anunciando André Silva, Filipe Louro e Pedro Alves como mestres de uma tendência musical chamada jambacore, que na verdade não existe (Jamba é, simplesmente, uma marca de smoothies), o surpreendente é que a sua música tem essa carga de irreverência, humor e, acima de tudo, teatralidade.
O que ouvimos envolve tendências do jazz como o hard bop e o free e do rock como o metal e o prog, mas tal não acontece por esquematismo fusionista e sim por desprezo pela autoridade (leia-se: a autoridade do jazz e a autoridade do rock). Nada mau, para músicos que fizeram do jazz e do rock as suas vidas – por exemplo, Louro faz parte de pelo menos duas formações de primeira linha da cena jazz do Porto, O Grilo e a Longifolia e o Eduardo Cardinho Quinteto, e ele e Pedro integram dois conhecidos grupos de rock, Salto e Catacumba. Com esta outra banda, vêm dizer que não aceitam as proibições e os tabus que lhes chegam de ambos os lados, que não se conformam, que têm necessidade, como já anunciaram, de «tocar música sem regras, sem ambições e sem expectativas».
Com tal atitude, deram corpo a uma das melhores propostas musicais surgidas em Portugal nos últimos anos…
Sarcasm and mystification are generally considered to be literary rather than musical devices, especially when the music involves neither voice nor lyrics, but this is not the case with The Rite of Trio project: André Silva, Filipe Louro and Pedro Alves present themselves as masters of jambacore, a musical trend that does not even exist, but the real surprise is the irreverence, humour and, above all, the theatricality of their music. What we hear is a fusion of hard bop and free jazz, metal and prog rock, but scorning all taboos, "playing music without rules, ambitions or expectations".
Surrealistas de outra maneira
Muitas suspeitas se levantaram assim que, no final de 2015, saiu o álbum Getting All the Evil of the Piston Collar!. Inspirar-se-ia The Rite of Trio, de algum modo, no surrealismo (não numa música surrealista, que nunca existiu, à exceção talvez do caso Erik Satie, mas no conceito que esteve por detrás da corrente estética liderada por André Breton)? O recurso ao non-sense e a um humor retorcido que fazem a imagem do grupo viriam de alguma influência do jazz holandês, conhecido por introduzir o gag nas performances? André Bastos Silva, Filipe Louro e Pedro Melo Alves negam tudo, mas com algumas ressalvas: «Não nos relacionamos com movimentos específicos da arte ou da vida, mas não queremos ser petulantes nem ingénuos ao ponto de nos considerarmos um produto nascido do vazio, qual big bang musical – haverá imensas pontes de contacto com muito do que se faz e se fez pelo mundo fora com uma mensagem forte, perpetuada nas gerações seguintes e refletida em cada escolha que fazemos.»
Esta formação do Porto que tem agitado os mares habitualmente calmos do jazz nacional é, assim, surrealista de outra maneira. «Que não no sentido estrito da tendência artística do século XX. Trata-se de surrealismo no sentido lato, de algo que se liberta para além da realidade normalizada. Esse é o nosso mote principal. De onde vem exatamente é como a história do ovo e da galinha. Não sabemos se o surrealismo já lá estava quando o grupo se formou ou se se foi demonstrando à medida que a coisa se autorreforçou e ganhou forma. A conclusão a que chegamos e que utilizamos para justificar isto é a "metáfora da vida". Temos esta ideia da vida no geral, de que tudo é caótico e absurdo e em grande parte arbitrário, aí cabendo todo o humor e todo o amor, que queremos que sejam explosivos. Isso aparece na nossa música e a partir daí em tudo o resto, na maneira como nos damos a ver e nos nossos concertos, sem fórmulas, a cada passo com uma manifestação nova», explicam os três músicos a uma só voz.
O nome escolhido para identificar a banda remete-nos para o rito, o ritual. Há a noção de que as músicas improvisadas ou com uma presença forte da improvisação são o que nos resta hoje das antigas práticas ritualísticas que envolviam cânticos e danças. Explicar a opção dessa maneira seria, no entanto, demasiado fácil. The Rite of Trio é mais rebuscado, no bom sentido: «O THE vem de The Smiths. O RITE fomos buscá-lo ao "The Rite of Spring", de Igor Stravinsky. O OF remete-nos para The Offspring. O TRIO, como só podia ser, alude à série de discos The Art of Trio, de Brad Mehldau. Só o "The" e o "Of" são mentira (risos). Inspirámo-nos mesmo no Mehldau e na obra de Stravinsky. Isso aconteceu numa altura em que o projeto ainda estava em fase embrionária e pouco podíamos garantir que esse fator ritualístico se refletisse tão claramente. Passados que estão uns anos verificamos que há qualquer coisa de xamânico em certas texturas com carácter extasiante. Nada de especialmente premeditado, no entanto. De qualquer modo, chegámos mesmo a debruçar-nos sobre o último andamento da Sagração da Primavera, antes de os The Bad Plus também o fazerem, e apresentámo-lo ao vivo.»
A designação The Rite of Trio parece igualmente sublinhar a condição de trio enquanto fórmula musical com as suas próprias características. A um primeiro entendimento parece, no entanto, duvidoso que haja alguma referência ao modelo power trio, mesmo que o rock esteja muito presente nos temas do grupo. Pois há e não há, em total paradoxo. «Existe uma divergência estilística com os típicos power trios, sim, mas temos uma atitude power trio no que toca à energia rock, que é muito straight forward. Na verdade, o nosso nome acaba por ser a coisa mais objetiva que temos», explicam. A este jazz com muito rock deram o guitarrista, o contrabaixista e o baterista o nome de jambacore. O rótulo nada significa, a não ser uma abordagem particular à combinação dos dois idiomas musicais: «O termo surgiu para definirmos um género alternativo a tudo o que tem sido feito com estes parâmetros. Claro que não é totalmente arbitrário, porque há core na nossa música, devido às várias cores do rock, do hard ao metal, passando pelo punk. O que não queríamos era uma associação a algo de concreto.» Não é fusão, tal como a entenderam os Soft Machine, nem o tipo de colagem cunhado por John Zorn. Sim um outro "Somethin' Else", para apontar um disco de Cannonball Adderley que, apropriadamente, nada tem a ver com o que aqui está em causa.
«Cada um de nós absorveu referências específicas do rock antes de estudarmos jazz, como o prog dos Dream Theater no caso do Pedro, de The Mars Volta ou Mr. Bungle no do André ou de Soundgarden no do Filipe. Não querendo nós criar um produto de fusão, elas acabam por aparecer, e isso porque são linguagens que estão muito à superfície no nosso imaginário. Num projeto como The Rite of Trio, em que dizemos ao nosso génio criativo para nos dar o que queira, tudo sendo permitido e válido e debatível, é natural que muitas dessas influências surjam naturalmente», ficamos a saber. Para Silva, Louro e Alves o rock veio, portanto, antes do jazz, mas nenhum deles acha que o impacto dessa expressão musical na sua opção pelo jazz seja algo de geracional: «Se fosse, ouviriam no que fazemos "sons" como Limp Bizkit, Linkin Park ou Deftones. As nossas referências rock, assim como as do jazz e da música erudita, vêm de uma procura de música mais estimulante. Na fase inicial do The Rite of Trio o nosso propósito era aliar o gosto e a dedicação de uma banda de rock com o conhecimento e as ferramentas de uma banda de jazz. Isso serviu-nos de inspiração numa altura em que ainda éramos musicalmente verdes e estávamos a tentar lidar com o grande trabalho que tínhamos em mãos. Chegávamos a ter três ensaios semanais e a coisa funcionou. Hoje em dia esse conceito já está ultrapassado, porque tentamos transcender as barreiras e os preconceitos estilísticos.»
O grupo não está isolado neste tipo de investimento. Todos os dias surgem no mundo casos de inovadoras relacionações do jazz com o rock: «O arranque do The Rite of Trio verifica-se depois de o festival 12 Points passar pela Casa da Música. Ver aquele melting pot de linguagens distintas a convergir no jazz, na altura em que estudávamos na ESMAE, foi inspirador para nós. Temos afinidades com os World Service Project e com os CHROMB!, que conhecemos no Spring On! do ano passado. Mas nem precisávamos de ir tão longe: os Azul de Carlos Bica e os Lokomotiv de Carlos Barretto são dois exemplos de grupos jazz com tendências rock que admiramos. Os World Service Project levaram o conceito de punk-jazz muito mais longe do que a maior parte dos grupos. Tudo aquilo parece estudado ao pormenor, desde a música às roupas e à atitude em palco. Partilhamos o mesmo desprezo pelas convenções e temos alguns pontos de contacto, em termos de som e de composição, mas as semelhanças terminam aí. Os CHROMB! estão altamente focados no aspeto humorístico da prestação. As composições são complexas e avançadas, mas tudo é tocado como se de uma brincadeira se tratasse. Os Azul inspiram-nos pela forma com que executam a música. Não somos esteticamente próximos, mas partilhamos o gosto pelo perfeccionismo e a vontade de levar o jazz por caminhos não óbvios. Os Lokomotiv são muito mais minimalistas, sendo que quase toda a sua música é um pretexto para a liberdade da improvisação. Também nós prezamos a inexistência de barreiras.»
É, de resto, por isso que nada com este trio é programático ou demasiado estabelecido, apesar de a promoção do seu disco de estreia ter salientado que o seu jazz estava «longe do romantismo de lareira» habitual neste ramo da música. «Não temos uma atitude específica. É qualquer uma, livre nas suas possibilidades: é música composta com instrumentação típica do jazz e com momentos de improvisação, sujeita a qualquer proposta que venha a surgir, inclusive romântica», dizem com um sorriso trocista. Para já, o que vamos ouvir na Culturgest é o que está no álbum: «Haverá uma novidade ou outra, mas vamos apresentar esse repertório porque em Lisboa há ainda muita gente que não ouviu o disco. Estamos a tocá-lo melhor agora. O projeto consolidou-se e tornou-se central nas vidas dos três.» Pois ainda bem, dado que Getting All the Evil… é uma das maiores surpresas destes últimos anos de jazz criativo…
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)