De cada vez que me convidaram para tocar na Culturgest, fui sempre desafiado a apresentar projetos que eu queria muito fazer, mas que por falta de tempo, ou de oportunidade, ainda não tinha conseguido realizar. Foi assim que fiz o meu disco a solo (Canções e Fugas) e o meu disco com o Novo Trio (Terra Seca), que me permitiu escrever música pela primeira vez para piano, guitarra portuguesa e contrabaixo. Ambos nasceram de concertos nesta sala. Fiquei por isso sentimentalmente ligado a ela. É por causa desse passado que quero voltar a trazer aqui música nova, sabendo que depois a irei gravar. É já uma tradição e as tradições, se forem boas, são para manter.
Desta vez venho com os meus companheiros de sempre: Bernardo Moreira no contrabaixo e Alexandre Frazão na bateria. É um trio clássico, mas é talvez a formação onde a liberdade é maior. Tocar com eles é sinónimo de fazer música com prazer, de poder arriscar sem sentir medo, experimentar novos caminhos sem ter que os comunicar ou explicar antecipadamente. É difícil encontrar músicos com quem seja tão fácil tocar. Por muito contraditório que possa parecer, há aqui um conforto que nos empurra para o risco. E esse risco é um dos motores da improvisação e da própria criação.
Quando entrar no palco e olhar em volta, vou ver o Bernardo e o Alexandre à minha frente, o público à minha direita, sentar-me-ei ao piano e sei que vou pensar: sou um tipo cheio de sorte.
Mário Laginha
Every time I'm invited to play at Culturgest, I'm challenged to present projects I've always wanted to do, but never had the time or chance to do so before. My solo album (Canções e Fugas) and my album with the Novo Trio (Terra Seca) both came from concerts here. This time I'll be bringing my faithful companions: Bernardo Moreira on bass and Alexandre Frazão on drums. They give me the chance to take risks, experimenting new paths without fear. And this risk is the driving force behind improvisation and creativity. When I step on the stage with Bernardo and Alexandre, I know I'm a lucky guy.
Mário Laginha
Jazz e democracia
Quando confrontado com o convite de trabalhar com a música de Chopin, Mário Laginha considerou de imediato que o trio de piano jazz seria a fórmula instrumental mais «desafiante» e «motivadora» para levar o projeto Mongrel a bom Porto. Tal como referiu à Imprensa nos idos de 2012, fazê-lo tanto com o formato solo, aquele com que o compositor polaco escreveu as suas peças, como à frente de uma orquestra (necessariamente entendendo esta como o ómega do piano) colocá-lo-ia «mais próximo do universo original», e não era isso, de todo, o que pretendia. Só o trio, hoje considerado clássico, de piano, contrabaixo e bateria o «obrigava a uma transformação maior» das partituras.
A sua respeitosa, ainda que atrevida, homenagem a Chopin foi, assim, também um tributo a esta fórmula surgida no jazz na altura em que este idioma musical se aproximava da metade do século passado. E um tributo de peso: Mongrel é uma obra-prima do jazz nacional, mesmo que tal afirmação não seja repetida as vezes que merecia. O tempo tende a passar indiferente pelos feitos dos artistas, correndo em direção a não se sabe muito bem o quê. Depois de os pensadores marxistas terem definido o socialismo como o «fim da história», vieram os neoliberais dizer que já vivemos nesse ato final, com o capitalismo. A velocidade com que vivemos as nossas vidas já não tem um destino, é ela própria um destino que se percorre em círculo, chegando-se sempre ao ponto de onde partimos num frenesim que confunde o momento da partida com o da chegada.
Com esses mesmos instrumentos, tocados por Laginha com Bernardo Moreira e Alexandre Frazão, tinha pouco antes (2007) o pianista de Sintra gravado o álbum Espaço, com este firmando a noção de que, sendo a música a arte por excelência do tempo, não há temporalidade que escape ao fator espacial – o fluxo da música não é um fio unidirecional, necessitando de uma envolvência, de uma "arquitetura", para poder existir. Mário Laginha tem plena consciência disso: a forma – a forma do jazz, no seu caso – não é mais do que o modo como se delimita o espaço.
Ora, se qualquer agrupamento reunido para criar música é uma célula social, um núcleo de interatividade entre indivíduos que espelha a sociedade em que estamos ou propõe uma outra que a melhore, este é um espaço de afetos, que não apenas de sons – afetos esses que, segundo Chantal Mouffe, têm um papel fundamental quando o propósito é radicalizar a democracia. O jazz e a música improvisada serão, talvez, as mais democráticas das práticas musicais da história, pelo que a consideração, por parte de Laginha, de que o trio de piano determina uma «enorme intimidade musical e humana» ganha um significado profundo.
Nesta área de criação colaborativa, mesmo quando há um líder que compõe e arranja para todos, aceitando dos seus pares as contribuições, a empatia entre os intervenientes chega a ser mais importante do que o "saber fazer". É esse o tipo de relação que Laginha, Moreira e Frazão têm uns com os outros. O Mário Laginha Trio deve muito do seu mérito à amizade que une os seus membros, a um nível que iguala a superior competência técnica e o amplo alcance estético que lhes reconhecemos. Assim se explica que este trio se junte volta e meia para nos oferecer algo mais, apesar dos muitos projetos que ocupam as agendas de cada um. Esse algo é simultaneamente geométrico e orgânico, regular e irregular, contínuo e descontínuo, plano e acidentado. Em síntese, aquilo que Laginha refere como «a maneira como respiramos a música», ao arrepio de um indesejável modelo de perfeição.
Os cultores do trio de piano apontam este como a «representação da essência do jazz», num regime de «condensação» das características do género com condições já consideradas «efetivas» e «funcionais». Ao longo da evolução do formato um ideal se foi impondo: a procura da máxima liberdade possível, passando a dita por contrariar uma rígida hierarquização em triângulo, com o pianista no topo e o contrabaixista e o baterista nos vértices da base. Leonard Feather colocou a questão deste modo: «Enquanto solista sem acompanhamento, o pianista é livre de tocar todas as partes de um tema, e de estruturar espontaneamente a música que toca, mas está privado das interações criativas proporcionadas por um ensemble. Ao invés, quando toca em grupos grandes, pode interagir com os outros, mas sacrifica habitualmente a sua liberdade de expressão pessoal.»
Em trio, aproveita as vantagens e sofre poucos dos prejuízos desses dois extremos, variando os seus papéis entre o solo e o acompanhamento, a improvisação melódica e a sustentação rítmica, podendo ainda suportar o contrabaixista. Aliás, esta última característica é habitual no Mário Laginha Trio, com o piano e o contrabaixo a desenharem uníssonos. A história do piano jazz trio é a da busca de equilíbrios entre o individual e o coletivo, e nesse aspeto as prestações deste agrupamento são como que um tratado sempre renovado e sempre recapitulando as inovações do passado desde o trio que Erroll Garner estreou nos anos 1940 e as adições que Horace Silver, Tommy Flanagan e John Lewis depois fizeram, passando pelo quase igualitarismo proposto por Bill Evans e continuado por McCoy Tyner, Herbie Hancock e Chick Corea, até chegar aos trios de Keith Jarrett e Brad Mehldau, aos combos já plenamente "socializados" The Bad Plus e E.S.T., aos cada vez mais numerosos piano jazz trios mentorizados pelo baterista ou pelo contrabaixista e aos projetos de índole experimental em que nenhum tipo de triangularização subsiste. Assim encenando, acrescente-se, a ideia democrática no seu estado mais puro: jazz como teatralização sonora da aspiração à democracia direta e do corte com a imposição racionalista de um "fim".
No meio de tudo isto, Mário Laginha coloca nos palcos e nos discos uma série de premissas que são igualmente fundamentais para Mehldau: «O importante é não travar o processo, a interação que existe entre os instrumentistas. Não indicar uma direção pré-estabelecida, não conceptualizar as orientações, inventar em conjunto os nossos caminhos, deixar que a música se desenvolva naturalmente no espaço da nossa escuta. As pessoas procuram experiências autênticas, procuram formas de expressão que reflitam uma intimidade, e isso passa inevitavelmente por um certo grau de vulnerabilidade, de fragilidade.»
É o que vamos ouvir, jazz intimista e frágil, imperfeito, democrático. Do melhor que se faz por cá e em qualquer lado…
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)