Para além de Andrew Hill (e de Julius Hemphill)
Ainda que nas quatro décadas de carreira que tem atrás de si Marty Ehrlich tenha contribuído de muitas outras maneiras para a arte do jazz, o seu nome está indelevelmente ligado ao do falecido Julius Hemphill. Poucos casos há de alguém que tanto se tenha dedicado a manter viva a obra de um terceiro, o que fez incluindo temas daquele saxofonista e compositor no alinhamento dos concertos e dos discos que protagoniza ou fundando um «coro de saxofones» – assim chamava ao The Julius Hemphill Sextet – para interpretar as peças deixadas por aquele seminal autor do século XX. Por isso mesmo, quando surgiram as primeiras notícias sobre o Trio Exaltation e a ligação deste a Andrew Hill, outra figura histórica do jazz, pensou-se que Ehrlich estaria a iniciar outra cruzada.
Se assim é, de facto, está a fazê-lo de outro modo, fruto de uma reflexão que vem desenvolvendo sobre a sua própria atividade e a identidade do jazz contemporâneo: «Como é que poderemos levar a música adiante? O trabalho dos artistas no campo do jazz e da música criativa caracteriza-se pela recriação ou pela inovação? Penso muito sobre este dilema. Ter as partituras de compositores como Hemphill e Hill publicadas e disponíveis para interpretação ajudaria a manter a sua música em circulação, mas desde que se seguisse um princípio: o de que as interpretações que lhes fizerem sejam abertas.»
Esta abertura, a noção de que o jazz deve inovar(-se) mais do que recriar, numa perspetiva de reprodução, as glórias do passado, é o que justifica o grupo que formou com o contrabaixista John Hébert e o baterista Nasheet Waits. «O Trio Exaltation é muito diferente do que eu fiz com a música de Hemphill. Não é uma banda de repertório. A conexão está no facto de o John, o Nasheet e eu nos termos encontrado quando tocámos com Andrew Hill. Costumamos interpretar a peça Dusk nos nossos gigs, mais alguma composição do Andrew, mas são sobretudo temas meus que utilizamos, com improvisações à mistura», explica.
O mote pode ter sido a convergência destes três ilustres no universo musical de Andrew Hill, mas há muito mais a justificar o projeto do que esse fator. Uma "exaltação" não funciona necessariamente como um tributo, sabendo-se como se sabe que este rótulo se aplica regra geral a modelos sacratizados: «O que nos liga é bem mais do que essa experiência em comum. O John é como um segundo soprador, dados o seu som cheio e o fraseado forte. O Nasheet é empático e energético. Ambos gostam de tocar um com o outro, e têm uma boa vibração. Tento encontrar coisas que funcionem neste contexto, diferentes do que é habitual. Aquilo que seja mais direto e imediato. A maior parte da música do trio é minha, com algumas peças abertas. Queremos que tudo se mantenha simples, com suficiente material para nos lançarmos a situações gratificantes de improviso. Procuramos uma interação e é nisso que está a minha força. Gosto de improvisação coletiva, e mesmo com formatos de canção ou com grooves desejo sempre que haja muito "toma e dá-me". Compor no momento é algo que, independentemente do idioma ou da linguagem, ouvimos em toda a história da música, mas excita-me, apesar de também me assustar, pelo difícil que é em muitos aspetos e pelo facto de não haver qualquer garantia de que funcione.»
Ou seja, Andrew Hill está lá, na música, mas não a limita. «Ele não tinha um tipo apenas de composição, e sim uma certa qualidade melódica – sendo eu próprio um músico melódico, essa característica atrai-me particularmente. De qualquer modo, as minhas composições não têm o Andrew como padrão. São outras as frases, os gestos, as ideias», insiste Ehrlich. «Julgo que o trabalho que fui desenvolvendo ao longo destes 40 anos tem sido consistente. Quase todos os discos que lancei contêm alguma peça de outro compositor, mas a fórmula "tocar a música de" nunca me interessou. Gravei três canções de Bob Dylan em três CDs distintos, e tive muito gosto em colocá-las ao lado de uma peça de Billy Strayhorn, de uma de Julius Hemphill ou de uma minha. Já com o Hemphill Sextet a história foi outra. Tratava-se de um grupo de trabalho. Tocava apenas a música dele, não a minha», acrescenta.
Muito provavelmente, Marty Ehrlich nunca teria chegado ao Trio Exaltation se não fosse essa devoção pela música do seu mestre. O Julius Hemphill Sextet permitiu-lhe continuar a estudá-la durante uma década após a morte de Hemphill, porque terá sentido que ainda não tinha resolvidos dentro de si os seus ensinamentos. A relação que teve com Andrew Hill foi outra, mais livre, chegando-lhe num momento de diversificação de parâmetros. «Sou um pan-estilista e tenho prazer nisso. Tenho prazer em lidar com um leque alargado de formas, linguagens e direções. Foi assim que fiz o meu percurso, é autobiográfico. A verdade é ampla, pode ser encontrada nas mais diversas áreas», diz. É esta a verdade de Marty Ehrlich, em jogo com as de John Hébert e Nasheet Waits, refletindo algo da verdade de Andrew Hill e obviamente da de Julius Hemphill, bem como as verdades de outros (Oliver Lake foi também seu professor), mais distantes, todas relativas, pessoais e deliciosamente subjetivas, intuitivas, improvisadas, inovadoras. É com desbravadores de caminhos como este que avança o jazz no século XXI…
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)