Luís Lopes está de regresso com mais um trio de carácter transnacional. Depois do projeto formado com os norte-‑americanos Adam Lane e Igal Foni e do Lisbon-Berlin Trio, partilhado com Christian Lillinger e Robert Landferman, em ambos os casos aliando um contrabaixo e uma bateria à guitarra, Lopes convida desta vez o francês Valentin Ceccaldi, um dos mais conceituados e prolíficos violoncelistas da nova geração europeia, e o jovem baterista norueguês Andreas Wildhagen, conhecido pelas suas prestações na Large Unit de Paal Nilssen-Love e no trio Momentum. A música é composta por Lopes, mas a escrita serve a improvisação dos três instrumentistas.
Um dos mais importantes nomes da música criativa portuguesa dos nossos dias, o percurso de Luís Lopes tem-se dividido por múltiplos projetos de características diferentes, com destaque para o Humanization 4tet (com Rodrigo Amado e os texanos Aaron e Stefan Gonzalez) ou o mais recente Garden (com Ricardo Jacinto e Bruno Parrinha), para as intervenções solitárias Noise Solo ou Love Song, para os duos com Jean-Luc Guionnet, Fred Lonberg-holm e Julien Desprez, ou ainda como membro do Lisbon Freedom Unit. A música de Lopes caracteriza-se pela sua voz única, livre de espartilhos e de condicionamentos formais. Guillotine inspira-se numa ideia de complementaridade entre o individual e o colectivo, dando espaço a cada um mas favorecendo uma entrega de grupo.
Luís Lopes has been involved in multiple projects: Lisbon Freedom Unit, Humanization 4tet (with Rodrigo Amado, Aaron and Stefan Gonzalez), Garden (with Ricardo Jacinto and Bruno Parrinha), Noise Solo and Love Song, or playing in duos with Jean-Luc Guionnet, Fred Lonberg-holm and Julien Desprez. Now he is joined by French cellist Valentin Ceccaldi and Norwegian drummer Andreas Wildhagen in yet another transnational trio, playing his own music, free of any formal constraints and inviting improvisation. Guillotine is based on an idea of complementarity between the individual and the universal.
De Lisboa para o mundo
Guillotine. Mais um grupo liderado por Luís Lopes com a participação de músicos de outras paragens geográficas, à semelhança do Humanization 4tet, no qual encontramos os irmãos texanos Aaron e Stefan González, e do Lisbon-Berlin Trio, completado pelos alemães Robert Landfermann e Christian Lillinger. Uma formação que surge igualmente na sequência de duos do guitarrista de Lisboa com Fred Lonberg-Holm, Julien Desprez e Jean-Luc Guionnet ou de passadas colaborações com figuras como Joe Giardullo e Benjamin Duboc. A associação, agora, com Valentin Ceccaldi e Andreas Wildhagen pode ser encarada como mais uma tentativa de ligar a música criativa portuguesa às de outras cenas ou de colocar no plano internacional este já reconhecido talento "da casa", mas para Lopes tem um objetivo e um significado que são simultaneamente mais pessoais e mais amplos, vindo antes de quaisquer considerações estratégicas e promocionais ou surgindo "em processo" como uma abstrata necessidade de extrapolação. A máxima «think global, act local» que vem limitando fisicamente a nossa imaginação criativa dá assim lugar a um muito mais ambicioso «think global, act global».
Afirma ele: «É uma questão primordial, consistindo na satisfação dos meus caprichos, que vão em diversas direções. Em primeiro lugar está a oportunidade de tocar com músicos de excelência que, pelas suas características especiais, me inspiram. Depois, vem a vontade de "viajar" inerente a este tipo de música, de tentar um contacto, quem sabe íntimo, de descobrir, partilhar, transcender ideias, regiões, mentalidades, preconceitos, tiques. Enfim, de comunicar, de conhecer os outros para assim descobrir mais de mim. Sou um universalista. A criatividade não pertence a ninguém em especial, existe em si e por si mesma.»
Portugal sofre as consequências de pertencer à periferia da Europa e do chamado Ocidente, e se tal circunstância determina a sua economia, apesar de pertencer à União Europeia (ou devido a tal circunstância, na hierarquia de importância das políticas comunitárias em que somos colocados), dita igualmente a sua vida cultural e artística: «São enormes, as dificuldades que temos em expandir-nos, e por vários motivos, alguns deles nascidos dentro do País e não impostos de fora. Ainda por cima há a barreira de uma Espanha criativamente meio adormecida. O certo é que, para sermos criativos, não precisamos de emigrar. A diferença está no facto de nas outras nações existirem suportes materiais bem mais generosos e uma maior dinâmica instalada. Para compensar, precisamos de singularidade, de vozes únicas que consigam romper com as agendas reacionárias e sem qualquer espírito de aventura que vão gerindo a atividade da música portuguesa.»
Mas porquê estes músicos, Ceccaldi e Wildhagen, em concreto, ambos valores em ascensão nos seus respetivos países, a França e a Noruega? «Porque me despertaram a atenção, ou melhor, porque de alguma maneira me perturbaram. É como aquela questão meio esotérica das almas gémeas que se atraem e identificam. Atacou-me uma espécie de força gravitacional. Vi e ouvi o Valentin a tocar variadas vezes, sempre com admiração. Depois conhecemo-nos e surgiu por duas ocasiões a oportunidade de tocarmos juntos. É a gravidade que faz com que as coisas aconteçam quando têm de acontecer. Uma delas foi em trio com o guitarrista Olivier Benoît, em Paris, no Tricollectif Festival. Valentin Ceccaldi é uma força da natureza, um colosso. A voz que o atravessa é de uma tremenda poesia. Surgiu dele a ideia de fazermos um trio. Procurávamos um baterista com características não convencionais e personalidade forte, que nos garantisse uma tensão permanente e fugisse ao facilitismo. Conheci então o Andreas, que já tinha visto com a Large Unit de Paal Nilssen-Love, quando veio a Portugal com o grupo Momentum. Falámos um pouco e gostei muito dele, para além de me entusiasmar a sua maneira sempre tensa de tocar, muito rítmica e meio primária. Propus ao Valentin e ficou!»
A apresentação dos Guillotine reivindica uma complementaridade entre o individual e o coletivo, com o espaço concedido a cada um para se expressar não se contrapondo à entrega de grupo, antes equilibrando os termos e libertando os músicos da própria música. Nessa mesma declaração de intenções refere-se igualmente que as composições de Luís Lopes são apenas motes para a improvisação e não propriamente molduras. São impulsos, sugestões, deixas, que não delimitações fronteiriças. Nada de novo, portanto: estas são regras elementares para o tipo de música em causa. Ou não será tanto assim, e o que está na teoria tem mesmo tradução prática?
«Os Guillotine são um campo energético com um infinito de elementos que se colocam por si próprios à disposição para serem usados. Como sempre se verifica, de resto. No entanto, existem opções. É nessas opções que residem as diferenças, e o interesse. As opções para cada projeto que me proponho realizar são totalmente objetivas, claro que com uma margem "irredutível". Refletem-se situações, observações, vivências, sensações, etc. É assim que eu sou, viajo na zona da separação entre o controlo e o descontrolo. Tenho um fetiche: gosto de me pôr a jeito do perigo, perigo de vida até. O Humanization 4tet é uma banda mundana, vivida e sentida na carne, na terra, na aventura libertina do coração, "on the road", "on fire", "on your face", "no bullshit", com partituras simples vividas intensamente e com oportunidades para todos improvisarem, falarem, desabafarem, despirem a camisola. O Lisbon-Berlin Trio é um grupo frio, algo influenciado pelos pesados e escuros Kreator, com temas mais virados para a desconstrução da sequência temporal, tocados de trás para diante e em todos os sentidos, segundo a implacável marcha da violência humana. Tenho muito cuidado e critério na escolha dos participantes, tendo em conta a sua interação com a direção pretendida.»
Ambos esses grupos, e os Guillotine com eles, trazem o inferno dos outros (para parafrasear Sartre) ao inferno de Luís Lopes: «Os meus solos "Noise" e "Love Song" representam as minhas incursões, ou tentativa de, para tentar entender qualquer coisa relativamente ao mistério do meu mais profundo "eu", e à forma como se relaciona com o "todo". Designadamente, para entender o amor, o desespero, o medo, a desilusão, a beleza, a pequenez, a impotência, a grandiosidade, a loucura, a amargura, a poesia por vezes. Estou sempre a estudar, na terceira pessoa, as minhas reações e os meus tiques, tentando entender porquê. Sempre com uma atitude auto subversiva, para me emendar e educar, na busca da liberdade. Esta auto subversão salva-me da mediocridade. Não tem que ver com a música, e tem! Já projetos como Garden, Big Bold Back Bone ou Lisbon Freedom Unit são coletivos nos quais cumpro um papel de interveniente igualitário, que é outra linha em que mergulho com toda a convicção, se bem que nos LFU funciono como uma espécie de canal para a resolução e a concretização. É uma banda complicada, com cabeças muito complexas e totalmente diferentes umas das outras. Foi incrível descobrir isso. Todos são duríssimos e ninguém vacila. Mas reside aí o desafio, pois essa tensão omnipresente é um fator que me apaixona. É uma grande banda, que depende da entrega emocional dos seus elementos.»
Seja qual for o contexto, «tem de haver vibração para que se proporcione aquilo que nos leva para fora da mesmidade do funcionalismo trabalho / responsabilidade». «Cumprir apenas é pouco. O campo energético tem de ferver, sempre no limite da explosão. É isso que eu procuro nos meus grupos, o clímax, a elevação. Os Guillotine inspiram-se na Revolução Francesa e em especial na Comuna de Paris, com organização de diferentes texturas por ordem específica, tipo: luta clandestina – preparação – revolução – festa – complicações – excessos – desmoralização – capitulação – reação – retrocesso, etc. Sempre em relação direta com as características dos intervenientes, que ditam a diferença.»
Músico de projetos, Luís Lopes avança para um novo sem que tal signifique o abandono (a recusa) dos demais. É mais um caminho que se oferece à exploração segundo as premissas de base que o sustentam, não necessariamente uma mudança de disposição. Quando o campo de possibilidades que se oferece é assim tão largo nenhuma redundância surge como risco. Os próprios Guillotine são a condição para que continuem o Humanization 4tet, o Lisbon-Berlin Trio, os Garden, os Big Bold Back Bone, a Lisbon Freedom Unit: «Os dois primeiros vão gravar novos discos em breve. O Lisbon-Berlin Trio está com convites para tocar ao vivo e há muito interesse pelo Humanization 4tet por essa Europa fora. Estes grupos estão sempre em aberto, é assim que penso neles, como algo permanentemente inacabado. Não me interessa o fim. O percurso é que importa. Se bem que me passe pela cabeça saber que aspeto terá o pós-colapso, a ruína, do edifício que estou a construir.»
Pouco importa também a Luís Lopes se a música de um grupo específico é mais jazz ou mais rock (este último, para todos os efeitos, o género de que provém) ou nenhuma delas. A porta que está a abrir com os Guillotine quer ele que lhe dê entrada «para o inesperado», ainda que este se declare como o produto de «memórias passadas, presentes e futuras, pois todas estão já escritas». Tal condição, no seu entender, não é um convite ao conformismo, mas precisamente o contrário…
Como diz: «A experimentação, a pesquisa, enfim, a transcendência, salvam-nos do vazio, do nada. Os sonhos, quando nascem, são logo nesse exato momento suscetíveis de realização. E assim as coisas acontecem. Haverá sempre mudanças. A evolução é inevitável, pois está inerente à própria existência. Sou um não-seguidista, sempre pronto para a desobediência e a rebelião. Não são apenas os estúpidos que tentam acabar com tudo o que não é igual a eles próprios – também a noção de "classe", que por razões óbvias é de natureza conservadora, pretende manter a todo o custo o seu estatuto. Os senhores da "normalidade" aconselham que nos deixemos estar quietinhos enquanto nos protegem e nos dão tudo o que precisamos para sermos felizes. Eles sabem que a grande massa prefere abdicar um pouco da sua liberdade para ter mais segurança, mas é preciso reagir contra isso e fazê-lo com coragem, hombridade e altivez. Mesmo não conseguindo tudo o que se pretende é o percurso, sempre o percurso, da superação dos problemas o que mais importa, em alternativa ao tédio vigente, que é o pior dos tormentos. A música, tal como as demais artes, reflete a sociedade. Neste momento as lutas parecem ser residuais, mas prosseguem as que se combateram na Comuna de Paris ou no Maio de 68. Ou talvez estejamos a viver pequenas revoluções, muitas, diversas e de alguma maneira convergentes. Vivemos tempos complexos.»
Pois atentemos em como soa a Revolução Francesa de 2017, em Lisboa, ou melhor, de Lisboa para a Europa e para o mundo…
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)