Nascida nos subúrbios de Ljubljana, Eslovénia, em 1987, e com formação superior em piano jazz (foi aluna de Vijay Iyer e Jason Moran) e em composição clássica (estudou com Richard Ayres), Kaja Draksler é um dos novos valores do jazz criativo que mais se têm afirmado estes últimos anos na Europa. Visita regular em Portugal, devido ao seu duo com a trompetista Susana Santos Silva, volta agora ao nosso país para apresentar um novo projeto que reúne oito figuras de primeira linha da Holanda, o país onde decidiu fixar residência, fazendo já parte da cena local.
O Kaja Draksler Octet cruza os seus conceitos nos âmbitos da improvisação e da escrita (para uso dos grupos Feecho e BadBooshBand ou por encomenda de big bands de jazz, formações de câmara e coros) num ensemble que integra duas vozes, instrumentos de palheta e violino, assim completando um espectro de timbres e cores que se aproxima tanto da música contemporânea como do formato canção tal como foi estabelecido nos domínios da folk e da pop. Estruturas complexas com temas simples e muito espaço para solos improvisados, concebidas a partir do seu piano (ou seja, orquestralmente), servem-lhe para desenvolver um visão da música em que cabem tanto as influências de Thelonious Monk e Cecil Taylor como as de Ligeti e da tradição popular da sua origem balcânica. Os poemas cantados são assinados pela artista plástica grega Andriana Minou, com quem mantém uma colaboração que reflete outro dos seus interesses: a criação transdisciplinar e intermediática, a exemplo do que faz com o coletivo I/O.
Born in Ljubljana, in 1987, pianist and composer Kaja Draksler is one of Europe's great talents in terms of creative jazz. She returns to Portugal with a new project: eight leading musicians from Holland, forming the Kaja Draksler Octet, an ensemble of two voices, reed instruments and violin, blending contemporary music and songs with a typical folk and pop format, leaving room for improvised orchestral solos conceived from her piano and developing the influences of Thelonious Monk, Cecil Taylor, Ligeti and traditional Balkan music, with poems sung by Greek musician and writer Andriana Minou.
Kaja Draksler ou a ingenuidade como atitude revolucionária
Sobre "Gledalec", o novo projecto em octeto de Kaja Draksler, a crítica referiu que estamos perante «uma linguagem de composição jazzística nova». Pode até ser que sim, mas a pianista eslovena que está nas bocas do mundo – ou pelo menos da Europa, dada a tradicional resistência norte-americana ao que lhe chega do Velho Continente com o formato da "sua" música – jura a pés juntos que não o fez com propósito e intenção: «Escrevi apenas o que ouvia dentro da cabeça.»
Do mesmo modo, é sem programa definido que Draksler está a entender de um modo inédito a corrente tendência para misturar idiomas musicais, associando elementos do free jazz e da livre improvisação a outros da música erudita contemporânea (e do Renascimento, sobretudo no tema de abertura, "Mirabile Mysterium", mas fazendo-se sentir em outros momentos) e da folk ou mesmo da pop. Tanto assim que o duplo álbum saído pela portuguesa Clean Feed não reproduz os processos usados pelo jazz de fusão da década de 1970 nem está em linha com a estética de colagem dos Noventa. «Não pensei em termos de estilos, mas de valores musicais. Simplesmente, senti que havia aspectos que faltavam ao jazz e à música clássica e quis compensar essas ausências. E como juntei músicos no meu grupo que vêm de diferentes origens, destinei-lhes materiais que pudessem iluminar os seus respectivos talentos e, ao mesmo tempo, desafiá-los», refere a jovem compositora de Ljubljana residente em Amesterdão.
A ingenuidade de Draksler não é inédita. Quantas vezes a evolução do jazz e as suas revoluções foram devidas a avanços que surgiram sem os seus autores perceberem bem o alcance que teriam ou qual o seu verdadeiro significado? Tendemos a julgar que cada inovação resulta de uma especial engenharia, quando o que se passa é bem mais prosaico: a novidade como algo que se deve à reunião de determinadas circunstâncias e condições ou à expressão de uma individualidade (a de um compositor) ou de um conjunto de específicas características pessoais (quando se trata de um grupo). Podemos teorizar o que quisermos à posteriori ou até durante estes processos em que se acrescenta alguma coisa ao que já foi feito, mas o que os explica é, muitas vezes, o acaso ou o que interiormente se fantasia. A responsável daquele que agora nos é apresentado ao vivo deita por terra essa noção de que há sempre uma estratégia, e da forma mais desarmante: «Não segui qualquer conceito específico. Apenas tentei diversas maneiras de compor para duas vozes.»
Mesmo isso – escrever para voz com múltiplas perspectivas – poderia ser entendido como um empreendimento ambicioso. Um crítico chegou, inclusive, a enraizar o tratamento do canto em "Gledalec" como a presente expressão de um contínuo musical que vem de Hildegard von Bingen (século XII) e teve Meredith Monk como principal expoente em anos recentes. Mais uma vez, porém, Kaja Draksler devolve-nos à realidade dos factos: «Foram as palavras que deram pretexto às composições. As palavras e a inspiração que as duas cantoras, Bjork Nielsdottir e Laura Polence, me providenciaram, somando-se às vozes que ouvia na minha imaginação.» As ditas palavras foram retiradas às obras do poeta chileno Pablo Neruda e do dramaturgo esloveno Gregor Strnisa e encomendadas à contista e performer grega Andriana Minou: «Comecei pelos textos e posso dizer que foram estes que determinaram a maior parte das peças. Uns surgem como "spoken word", outros constroem uma narrativa ao longo dos dois CDs e com alguns criei uma espécie de jogos. Em certas passagens utilizo esses textos na língua original, mas também traduzidos em Inglês, para as pessoas poderem aceder melhor à música.»
A inclusão de dois saxofonistas e clarinetistas (Ab Baars – que também toca shakuhachi, a tradicional flauta de bambu japonesa – e Ada Rave) parecia anunciar uma intrigante organização por pares com as duas vozes, mas se tal vai acontecendo aqui ou ali («era inevitável», admite Draksler), a relação do núcleo vocal com os instrumentos é bastante menos fixa. «Os sopros combinam-se, regra geral, com o violino (ou a viola) de George Dumitriu e com o contrabaixo de Lennart Heyndell, quando não se diluem no todo, incluindo o piano, tocado por mim ou pelo baterista Onno Govaert quando estou a conduzir, e a bateria. As instrumentações variam muito», esclarece.
Só assim, de resto, os contrastes procurados se revelam, em particular entre a forma-canção e a música instrumental e entre a interpretação do que está notado e a improvisação sem cifras. Mas assim como há contrastes, há zonas dúbias em que se torna impossível detectar onde termina um tipo de abordagem e começa o outro. Até por isso a relação entre simplicidade e complexidade na música de Kaja Draksler nunca é óbvia. Um antigo improvisador (tocou com Derek Bailey) tornado compositor neoclássico, Gavin Bryars, sustenta que só a música escrita pode ser complexa. Em "Gledalec" muito do que é estrutural e lexicalmente mais simples está nas partituras, com as intervenções improvisadas a revelarem-se extraordinariamente complexas – atente-se, por exemplo, no que Baars faz com o saxofone tenor em "The Builder". Mas como nada está normatizado, o contrário também se verifica. «Gosto de ir até aos dois extremos do espectro, mas não é possível ficarmos sempre neles. Até porque, para irmos até ao outro lado, há que atravessar muito terreno», explica.
"Gledalec" tem outra particularidade. Trabalhar com um octeto no âmbito do jazz suporia que Draksler fizesse uso das coordenadas que identificam o formato big band, mas não é o que verificamos. A moldura desta proposta é fornecida pela música de câmara, à semelhança de outras (de terceiros) que a antecederam – algumas até derivando de uma atitude anticonformista. Só que, uma vez mais com a ocasional parceira da portuguesa Susana Santos Silva, essa troca não foi intelectualmente (musicologicamente) decidida. «Não penso nesses termos. Não avalio as coisas assim. Apenas componho o que oiço dentro de mim e o que acho interessante. Enquanto escrevo não tenho consciência desses parâmetros, vou em frente», confessa a artista. Pois ainda bem que há quem nos surpreenda por servir a sua própria alma criativa e não as doutrinas estéticas que vigoram. E ainda bem que alguma inocência (a inocência possível de quem estudou a arte pianística de Cecil Taylor e teve lições de Jason Moran e Vijay Iyer) ainda se contrapõe às cartilhas e agendas deste mundo conduzido por pressupostos. Hoje, pouco há de mais autêntico e despojado do que a música que Kaja Draksler nos dá a ouvir…
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)