Nos caminhos da nova improvisação que nos chega do Norte europeu, a de origem norueguesa vai-se distinguindo cada vez mais das que compõem a generalista cena escandinava. Se o quarteto Oker é outro dos presentes regressos a uma condição musical integralmente acústica, no seu caso isso não significa um regresso às matrizes do free jazz ou do pós-bop, e sim ao primado do som, colocando em primeiro plano os jogos de timbre e a paisagística manutenção de atmosferas: é como se as premissas da música que apresenta estivessem antes da própria ideia de música. Aliás, só o contrabaixo parece assumir os papéis que lhe foram convencionalmente destinados – é ele o instrumento que dá terra a tudo o mais, impondo um groove, por mais desconstruído que este aparente ser logo no momento da construção, e uma linha melódica, mesmo que regra geral desenvolvendo-se fora das convenções estabelecidas. Já o trompete, a guitarra clássica e a percussão (pouco mais do que uma tarola, na verdade) são o ar da pairante, etérea e muito leve música improvisada que nos é proposta pelo grupo de Oslo, recorrendo a técnicas extensivas e a preparações, recusando linearidades frásicas e procurando mimetizar o voo dos pássaros. É a forma como a gravidade regula essas subidas ao céu que torna os Oker tão fascinantes, provando que até o sonho musicalmente induzido pode ser orgânico.
Using a form of improvisation that is different from that of most other Scandinavian bands, the Oker quartet mark a return to entirely acoustic music. Not free jazz or post-bop, but a return to the primacy of sound, with games of musical timbre that serve to landscape atmospheres, as if the premises of the music they present preceded the idea of the music itself. The double bass imposes an earthy groove and a melody, outside the normal conventions. The trumpet, classical guitar and percussion (really little more than a snare drum) give us the hovering, ethereal and weightless improvised music.
O tamanho da luta dentro de um cão
Na área da música improvisada as tendências existentes são facilmente identificáveis: ou há uma referenciação idiomática relativamente ao jazz e por vezes, até, ao rock ou a matriz está na música erudita e na experimental, isto quando os recursos utilizados não provêm de todas essas correntes em simultâneo. Quando assim não acontece, a fuga aos parâmetros de todos os géneros faz-se por meio de elementos formais e tipos de abordagem que, também eles, definem um idioma musical. No meio disto surgem, porém, grupos que dificilmente podemos categorizar. Um destes poucos dá pelo nome de Oker e vem da Noruega, onde o dito significa "Ocre". Se fosse uma palavra holandesa, seria traduzível por "Errado", o que neste caso até seria pertinente, pois o quarteto mantém características que nos levam a situá-lo nesse âmbito, não obstante tudo o mais escapar àquilo que se espera do rótulo free improv.
Fredrik Rasten, o guitarrista do colectivo e seu porta-voz, explica a situação deste modo: «Há hoje a tendência, no meu país e não só, para se ser infiel ao estilo musical de que partimos, ainda que as molduras deste continuem presentes. Aliás, as diferentes cenas da Noruega estão cada vez mais a misturar-se e as fronteiras entre as músicas vão-se esbatendo. No nosso caso, continuamos a aplicar a estrutura não-hierárquica de banda da pop e do jazz. Lidar ainda com esses parâmetros é positivo, pois ligam-nos à história e servem como casas seguras a que podemos voltar sempre que nos distanciamos. Não encaramos a improvisação como um dogma, mas porque estamos habituados a improvisar é esse o nosso ponto de partida, é essa a metodologia que escolhemos como a dominante.»
A própria maneira de estar de Rasten na música é esclarecedora: este improvisador que também compõe, e que improvisa como um compositor, tem as suas raízes na música antiga, com predilecção pela do renascentista John Dowland, e na folk britânica, em especial a praticada por figuras como Bert Jansch e Anne Brigg.
É por tal motivo que as conexões jazzísticas da improvisação dos Oker nunca desaparecem por completo. Os motivos rítmicos introduzidos por Adrian Myhr, o contrabaixista, mantêm essa ponte, sendo fundamentais para a caracterização do estilo único do grupo. «O Adrian fornece um contraste à nossa música. Gostamos particularmente que elementos mais convencionais se combinem com os abstractos», explica Rasten. Esta "abstracção" decorre de uma particularidade: a preocupação prioritária pelo som. É todo um repensamento do formato acústico que esta formação do Norte da Europa está a colocar em prática, o que tem passado ora por uma redução das ferramentas que utiliza, ora pela ultrapassagem das capacidades físicas naturais dos instrumentos.
«Tentamos colocar algumas limitações ao que fazemos. Quando as possibilidades são mais amplas, obtemos um maior nível de liberdade porque temos uma maior paleta de sons, mas quando nos impomos alguns limites desenvolve-se mais a nossa imaginação relativamente ao que podemos fazer com os poucos meios escolhidos. Uma pedra a raspar numa corda faz toda a diferença: só se pode compreender por inteiro aquilo que se ouve tendo em conta os materiais que estão em causa, ou seja, reconhecendo os objectos que temos diante de nós. Se o baterista Jan Martin utiliza apenas uma tarola, isso dá-nos um foco. Sabemos antecipadamente que não vamos ouvir o splash de um prato, o que determina bastante a maneira como ouvimos e, logo, como tocamos», acrescenta Fredrik Rasten.
A utilização de técnicas extensivas e de preparações tornou-se comum na música improvisada, e também os Oker não fogem a essa regra. São, inclusive, generosos na gestão desses recursos, mas enquanto os desmistificam e colocam ao serviço da música: «Enveredamos muito por experimentações pessoais, sim, mas tanto quanto seguimos técnicas mais idiomáticas. Não se trata de escolher entre umas e outras, mas de procurar vias de expressão que nos inspirem e que nos permitam encontrar uma identidade própria. As técnicas extensivas têm um problema: exigem um trabalho maior do que o próprio som produzido por elas. Podem ser entendidas como algo de impressionante, mesmo que não sejam musicalmente proveitosas. Tentamos não cair nessa armadilha. Enquanto guitarrista, o meu interesse maior no momento vai para os resultados timbrais e de ressonância que se conseguem quando se altera a intonação. Ora, ao trabalharmos com notas longas, tentamos que estas tenham alguma flexibilidade, e o certo é que tanto as técnicas extensivas como as tradicionais servem para tocar sustenidos.»
Também as preparações «de pouco valem por si mesmas». «Uma música pode soar a algo de novo e fresco mesmo que os seus executantes toquem de modo "normal". De resto, hoje é difícil distinguir o que é tradicional ou não. As técnicas extensivas e as preparações tornaram-se numa convenção da música improvisada tanto quanto o são o vibrato na música clássica ou as cascadas de duplos bombos no metal», argumenta Rasten. Além disso, o que se vai criando com umas e outras tem como farol as sonoridades da música electrónica, o que contraria qualquer conceito que privilegie o factor acústico: «É uma conotação de sentido – um trompete "extensivo" soa electrónico porque o outro paradigma de som existente é o electrónico, assim como um sintetizador que procura parecer-se com um instrumento acústico o faz de forma inversa. Passa-se de uma "normalidade" para outra. Um som não é apenas um som, toda a informação que transporta consigo define a maneira como é percebido.»
A «experienciação física dos fenómenos acústicos» é central em toda a actividade de Fredrik Rasten, reflectindo-se na generalidade dos seus projectos e dos combos em que participa. A terminologia por este aplicada é a científica, mas é Arte, não Física Acústica, que está em questão. «Não, os Oker não têm um entendimento científico do som. Apenas queremos convidar quem nos ouve a dar atenção a esse aspecto. Se tocamos um intervalo com um determinado timbre e um volume específico, resultam tons distintos e fenómenos psico-acústicos ou outros. O que pretendemos é que o ouvinte, mesmo nada sabendo da ciência que está por detrás, ganhe consciência disso e detecte esses pormenores durante a escuta», diz.
Com este mesmo programa, antes dos Oker, havia Pip, o duo de Rasten com o trompetista Torstein Larsen. A relação entre os dois projectos é estreita: «O Torstein foi o último membro da banda a entrar. Adrian, Jan e eu tínhamos realizado algumas jams e pusemo-nos a pensar sobre quem poderia ser o melhor quarto elemento. Sugeri o Torstein porque já tocávamos juntos há sete anos e achei que ele encaixaria bem. O relacionamento com a música dos Pip veio por acréscimo. Por vezes utilizamos o material do duo com sons muito esticados, tornando-o numa parte da fórmula Oker. Já em outras ocasiões evitamo-los intencionalmente. Aliás, os Oker funcionam muito como um duplo duo, dois duos a actuarem em conjunto, e não apenas segundo a divisão trompete / guitarra versus contrabaixo / bateria. O Jan e o Torstein estabeleceram umas bases em que os seus instrumentos se fundem e podemos unir os registos baixos da guitarra com o contrabaixo. São várias as constelações possíveis, tocando uns com, e contra, os outros de maneiras diferentes.»
Diferentes como? Bom, os Oker são umas vezes "orgânicos", outras "atmosféricos" e em outras circunstâncias ainda podem desdobrar-se em "gestos aéreos", com combinações igualmente variáveis desses parâmetros. Estas são designações assumidas pelos próprios, surgindo amiúde na promoção dos seus discos. «Sabemos que o adjectivo "orgânico" está a tornar-se trivial, de tão abusado. Ainda assim, para nós funciona como uma metáfora, sugerindo que a nossa música se desenvolve de uma forma semelhante aos (ou inspirada pelos) processos da vida orgânica na natureza. É uma palavra útil devido à sua abertura e por não constituir um termo musical técnico, permitindo um grande espectro de associações. O termo "atmosférico" refere, por sua vez, os sons suspensivos que utilizamos e "gestos aéreos" vai para os eventos mais curtos. Estes planos podem ocorrer em simultâneo, quando os tocamos individualmente, ou podem surgir à vez, se todo o colectivo se juntar», explica Fredrik Rasten.
Eis, então, um grupo de música improvisada estranho à generalidade das propostas que provêm deste circuito e com todo o seu encanto a residir, precisamente, nessa particularidade. Um grupo que nos faz lembrar esta frase atribuída a um antigo presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, a propósito de parecer não sendo e ser não parecendo e do bom que é um erro de julgamento: «O que conta não é necessariamente o tamanho de um cão na luta com outros cães, mas o tamanho da luta nesse cão.»
Rui Eduardo Paes
(ensaísta, crítico de música, editor da revista online jazz.pt)