“A ópera está hoje próxima da Rocha Tarpeia. O seu triunfo aparente e por vezes arrogante não deve dissimular que há perigos à espreita”.
São estes os termos de abertura de um livro que, não obstante os quase 20 anos passados, permanece uma das referências básicas ao estudo das estruturas, economia e políticas da arte lírica e dos seus teatros, Opéras – Faut-il fermer les maisons de plaisir?, de Bernard Bovier Lapierre.
Numa perspectiva fortemente crítica do grande projecto de François Mitterand que foi o novo teatro da Bastilha, Maryvonne de Saint-Pulgent analisou em Le syndrome de l’opéra as raízes históricas e ideológicas de um projecto de “grande ópera popular”, e não só os seus custos acrescidos como também a intensificação de problemas gerais de “serviço público” (aumento exponencial de pessoal e burocratização das estruturas) que o projecto acarretou – o projecto de “maior democratização” do Príncipe eleito, um Presidente da República.
As estruturas da arte lírica, os seus teatros institucionais e permanentes, geram também a contradição de, muitas vezes, um acréscimo do seu sucesso e capacidade de apelo público provocarem acrescidas dificuldades económicas e de gestão. Ao já de si assaz complexo binómio de democratização e esfera do Príncipe, de prestação mais ampla de serviço público e de dependência directa do poder político, acresce uma nova economia cultural empresarial dos teatros públicos, nalguns aspectos inevitável, dada a sua inscrição num mercado específico e em circuitos económicos internacionais particulares, realidades que levaram também a transformações institucionais corporizadas num novo binómio, de entidades públicas e fundações privadas.
O Teatro Nacional de São Carlos foi fundado em finais do século XVIII já de si com uma dupla filiação, por um lado iniciativa de burgueses e símbolo de uma cultura “iluminista” e cosmopolita, por outro lado numa dependência particularmente próxima do poder, incorporado que foi à Casa Pia, dependente da direcção e inspecção da intendência geral da polícia, de Pina Manique.
Os sucessivos falhanços de tentativas de gestão e exploração privadas consagrariam a dependência do teatro de uma intendência geral do poder político. Assim voltou a ser quando da sua reabertura, em 1946; o teatro que já dependera de Pina Manique passou a matéria de intendência directa de Salazar.
Basta atender à legislação para verificar que, instaurada a democracia, tem havido sucessivos e diversos entendimentos políticos da estrutura e quadro legal do teatro nacional de ópera – transformação em empresa pública com o Decreto-Lei n.º 259/80 de 5 de Agosto, constituição de uma fundação de direito privado e utilidade pública pelo Decreto-Lei n.º 75/93 de 10 de Março, de novo organismo público pelo Decreto-Lei n.º 88/98 de 3 de Abril. Outra mudança se anuncia agora. Resulta evidente que como cúpula simbólica tradicional do aparato cultural do Estado, o São Carlos continua recorrentemente a ser objecto de instabilidades institucionais que, se são também fruto de novas realidades do espectáculo lírico, não deixam de assinalar o empenho directo de alguns governantes em moldá-lo a entendimentos políticos próprios.
Uma apreciação do impacto público e cultural da actividade desenvolvida pelo teatro supõe a rememoração, antes do mais, de alguns dados de base. É o único teatro português de ópera mas inclui também a designada Orquestra Sinfónica Portuguesa; os seus objectivos são os definidos no Artigo 5.º da lei ainda em vigor a saber:
1 – A actividade do TNSC assenta na prossecução dos seguintes objectivos:
a) Produzir e apresentar regularmente o grande repertório operático, sinfónico, coral e coral-sinfónico internacional de todos os tempos, incluindo a criação contemporânea, segundo padrões reconhecidos de excelência e actualidade artística e técnica, que devem constituir uma das razões da existência do TNSC;
b) Divulgar a literatura operática, coral, sinfónica, e coral-sinfónica portuguesa do século XVII à actualidade, podendo para o efeito promover a encomenda de novas obras susceptíveis de enriquecer esse património e de edições musicológicas modernas de obras inéditas;
c) Contribuir para a integração crescente de Portugal nos circuitos artísticos internacionais, pela apresentação de maestros, encenadores, solistas e demais colaboradores artísticos neles consagrados, sem prejuízo de uma política equilibrada de promoção e valorização dos artistas portugueses, incluindo os valores mais jovens, bem como pela prossecução de uma estratégia de intercâmbios e colaborações internacionais que viabilizem a apresentação no estrangeiro de obras, artistas e técnicos nacionais;
d) Apoiar o desenvolvimento e a pesquisa de novas linguagens e tecnologias artísticas em todos os aspectos da produção contemporânea de ópera, designadamente no plano da interpenetração da música com as restantes artes do espectáculo.
2 – O TNSC prossegue ainda os seguintes objectivos:
a) Promover iniciativas próprias e estabelecer protocolos de colaboração com instituições de ensino especializado, em particular as de nível superior, com vista ao estímulo da formação, do aperfeiçoamento e da profissionalização de novas gerações de artistas e técnicos em todos os seus domínios de intervenção artística;
b) Desenvolver projectos diversificados de formação, edição, animação, investigação e comunicação tendentes à difusão do gosto pela ópera e da informação sobre a sua história, teoria, estética, técnica e pedagogia, em Portugal e no plano internacional;
c) Estimular a criação de novos públicos através de programas especificamente concebidos para o efeito, no seio da sua actividade de produção de espectáculos, ou paralelamente a essa actividade, tendo em especial atenção a criação de novos públicos no domínio da juventude.
Entre a tutela e o director do teatro ocorreu agora uma divergência de entendimentos por aquela designada de “hermenêutica da pré-compreensão”, respeitante à anunciada instituição de um novo organismo artístico público que aglutinará o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado, sendo todavia que os directores artísticos dessas instituições são designados directamente pela tutela e não pelo órgão dirigente da nova estrutura. Terminando o mandato do director em exercício, Paolo Pinamonti, em 31 de Março, não foi o mesmo reconduzido. Entre outros sentimentos, o momento é também de balanço.