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DERIVAS 2006 – 2008

In memoriam
Galina Ustvolskaia

8 de Janeiro de 2007 – por Augusto M. Seabra

A notícia, na imprensa portuguesa, apenas veio, uns dias mais tarde, numa “breve” no caderno “Actual” do Expresso. Talvez nem tenha chegado por despacho de agência, mas mesmo nas redacções em que se consulte o obituário do New York Times –um exercício da estrita obrigação jornalística – o nome com toda a probabilidade terá parecido ignoto ou irrelevante.

Nesse aspecto, foi um post-scriptum de uma recepção crítica estonteante de recusa e desconhecimento, ocorrida quando do único concerto que em Portugal se realizou totalmente dedicado à obra de Galina Ivanova Ustvolskaia (1919-2006). Sendo então assessor musical do Centro Cultural de Belém o também compositor António Pinho Vargas, um concerto do Schönberg Ensemble, dirigido por Reinbert de Leeuw, a 20 de Março de 1999, foi preenchido pelas obras da compositora de São Petersburgo que aquele conceituado agrupamento tinha gravado num disco para a Philips, de resto o único registo monográfico da autora com selo de uma major: Donna nobis pacem (1970/71), para flautim, tuba e piano, Dies irae (1972/73), para oito contrabaixos, percussão e piano, e Benedictus qui venit (1974/75), para quatro flautas, quatro fagotes e piano – e atente-se ao carácter religioso dos títulos e às inusitadas formações instrumentais.
Mas também se deve dizer que não foram muitos os jornais a trazerem a notícia. Na morte, Galina Ustvolskaia foi afinal reservada como na vida. Houve tão só a colocação on-line da notícia do óbito a 22 de Dezembro no site da editora das suas obras, a Hans Sikorski. E foi a partir de um post colocado pelo crítico musical do New Yorker, Alex Ross, no seu blog The Rest is Noise, que a notícia se difundiu.

É um facto que são poucas as compositoras reconhecidamente de relevo, mas a própria formulação supõe uma questão pública e desde logo histórico-sociológica para a categoria de “reconhecimento”; que uma talentosa Fanny Mendelssohn tenha tido que prescindir do nome e do estatuto autoral para as suas obras serem publicadas com o nome do irmão Felix, é apenas um exemplo das condicionantes sociais para essa restrição de compositoras reconhecidamente de relevo. Hoje, quando, qual fenónemo milenar também, a abadessa Hildegard von Bingen é objecto de uma espécie de “culto”, quando se redescobriu uma Barbara Strozzi, etc., destaca-se a figura maior de Sofia Gubaidulina, por vezes a ponto de já me ter ocorrido chamar a atenção para Kaija Saariaho e Galina Ustvolskaia.

Mas este modo de raciocínio, que é uma questão afinal também do espaço público, era de todo estranho a Ustvolskaia. Ela rejeitava-a mesmo: “Em relação ao ‘Festival de Música de Compositoras’ quero dizer o seguinte: pode realmente ser feita uma distinção entre música escrita por homens e música escrita por mulheres? Se agora houver ‘festivais de música de mulheres compositoras’ não teria de haver também ‘festivais de música de homens compositores’? Sou de opinião que não se deve consentir que uma tal divisão persista. Apenas devemos tocar a música que seja forte e autêntica. Se assim formos sinceros, a realização de um concerto de mulheres compositoras é uma humilhação para a música. Espero que estas considerações não ofendam ninguém – o que digo vem do mais profundo da minha alma”.

E contudo também há um outro modo de considerar Ustvolskaia nesta suposta divisão “sexual/social”. No post referido, Alex Ross escreveu: “Foi talvez no momento em que Chostakovich submeteu várias das suas obras à apreciação de Ustvolskaya que finalmente terminaram séculos de dominação masculina na arte da composição”.
Galina e o Mestre – por razões outras que as da paráfrase do romance de Bulgakov que é peça tão imprescindível do clima político e cultural em que ambos, o mestre, Dmitri Chostakovich, e a pupila, Galina Ustvolskaya, viveram durante décadas na União Soviética, e em concreto sob a tutela de Estaline, por razões outras, há matéria suficientemente importante para não se poder deixar de falar dessa relação.
“Eu tenho talento, tu és um fenónemo”, ter-lhe-á dito o mestre. Foi intenso o fascínio dele por ela. Chamou-lhe “a minha consciência musical”, e no modo mais críptico que lhe era íntrinseco, prestou-lhe homenagem citando o final do Trio com clarinete de 1949, uma das primeiras obras dela, logo no Quarteto de Cordas nº5, mas também, muitos anos volvidos, na Suite sobre Versos de Michelangelo Buonarrotti. Era um “segredo conhecido”, como Rostropovich confirmou, o “affaire” do mestre e da pupila. Mas quando depois da morte da sua primeira mulher, Nina, ele a pediu em casamento, ela recusou. Já então, em meados dos anos 50, figura isolada e obstinada, Ustvolskaya viria a dizer, em 1995, numa rara entrevista à revista Tempo, na sua única deslocação ao estrangeiro, a Amesterdão: “Então, como agora, rejeito com determinação a música dele e, infelizmente, a sua personalidade apenas intensificou esta atitude negativa... Uma coisa é clara: uma figura supostamente eminente como Chostakovich não é de todo eminente para mim, e pelo contrário, foi um peso na minha vida e aniquilou-me os melhores sentimentos”.

Viria assim a morrer em finais de um ano Chostakovich (que de resto, e em rigor, termina a 12 de Janeiro, quando 2006 se conclui no calendário russo), aquela que foi a primeira compositora (ou compositor) pós-chostakovichiana, aquela que precisamente teve a dado momento de formação a relação mais próxima e que seria a primeira a emancipar-se da filiação. E esta não é uma questão dispicienda.

A música digamos que “pós-soviética” é marcadamente “pós-chostakovichianana”, por vezes, muitas vezes mesmo, de modo tão só epigonial. Por outro lado, há uma tendência mais genérica na criação musical nos países que foram do socialismo real a um marcado “espiritualismo”, que se diria precisamente antecipado por Ustvolskaya. Mas as suas obras em nada se relacionam com as ora mais reconhecidas de um Arvo Pärt ou de um Gorecki.
Ficou célebre a adjectivação do crítico holandês Elmer Schoenberger, “A senhora com martelo”, pela repeticão insistente de blocos homofónicos e os fortissimi que são  peculiares às suas obras, e tantos mais quanto as suas combinações intrumentais são inusuais. Por exemplo, num catálogo de pouco mais de 20 obras (tais os ditâmes da auto-exigência), e de que foram excluídas as primeiras obras “alimentares” ao estilo do “realismo socialista”, existem cinco sinfonias, mas a nº2 e a nº3 são para voz e pequena orquestra e, mais “insólito” ainda, a nº4, “Oração”, é para voz, piano, trompete e tam-tam e dura apenas seis minutos, enquanto que a nº5, “Amen”, é para voz, oboé, trompete, tuba, violino e percussão.

Tendo encontrado o seu próprio caminho no início dos anos 50, Galina Ustvolskaya foi um caso excepcional de isolamento e alheamento do mundo exterior, de obstinação e radicalidade, tornando cada uma das suas obras numa espécie de ritual, grito e hino, um modo de re-ligação, no mais autêntico sentido do termo – e o carácter “autêntico” e “forte” das obras eram-lhe critérios fundamentais. Durante anos, décadas, apenas a Sonata para Violino de 1952 foi “tolerada”, e mesmo no exterior não havia praticamente quaisquer referências. Só com o fim da União Soviética se pode enfim conhecer Galina Ustvolskaya – “Não há qualquer laço entre a minha música e a de qualquer outro compositor, vivo ou morto”; “As minhas obras não são religiosas em sentido litúrgico [note-se que não era de resto praticante] mas estão inbuídas de um espírito religioso, e creio que são mais adaptadas a execucção numa igreja. Na sala de concertos, num ambiente ‘secular’ a música soa de outro modo..”.

“Donna nobis pacem”, Galina Ivavona Ustvolskaya (17-06-1919/22-12-2006), extraordinária compositora, extraordinária exemplo de intransigência estética num século turbulento e movediço.