Vinha de longe a batalha das “maçãs”, a da Apple Corps, a companhia dos Beatles, e a da Apple Inc., a firma de informática. De facto, os logotipos não se confundem, o dos Beatles sendo propriamente uma maçã, o outro sendo às riscas multicolores. Mas ainda assim a utilização do “logo” era disputa que se arrastava há mais de 25 anos, desde os finais dos anos 70.
Em 1981, um acordo estabeleceu que a Apple Corps utilizaria o “logo” no tocante a música e concertos, e a Apple Inc. no respeitante a computadores e material informático. Em 1991, quando a Apple Inc. lançou computadores com programas de leitura e armanezamento de música, a extensão de campo forçou a novo acordo, nos termos do qual a firma de Steve Jobs pagou à dos Beatles 26, 5 milhões de dólares. Mas o lançamento do iPod, em 2001, e sobretudo da plataforma iTunes, em 2003, tornou a Apple Inc. num novo e primordial actor de distribuição musical e reacendeu a querela com Paul McCartney, Ringo Starr, a viúva de John Lennon, Yoko Ono, e os herdeiros de George Harrison. Já tendo sido dos últimos a reconverterem-se a reedições em CD, os detentores da propriedade intelectual dos Beatles são o mais notório caso de obstinação na recusa em ceder aos downloads, pesem ainda as pressões da EMI, que possui os direitos sobre as gravações. E assim se reacendeu também a disputa, Apple Corps versus Apple Inc..
A 29 de Março do ano passado, a Apple dos Beatles apresentou queixa contra a outra, acusando-a de ter infringido o acordo que lhe interditava o sector da música. A 8 de Maio, tendo a companhia informática argumentado que a posse de tecnologia para distribuição de música não supõe o mesmo que deter os direitos dessas músicas – como se o iTunes fosse apenas um equipamento electrónico, lógica qualificada de “perversa” pelo advogado da outra parte –, um tribunal britânico considerou que a associação do logótipo da Apple Inc. ao iTunes “não sugere uma ligação significativa com a obra de criação”.
Segunda-feira, 5 de Fevereiro de 2007, as duas partes chegaram finalmente a acordo, desde logo fazendo crescer a especulação sobre a possibilidade de as músicas dos Beatles estarem em breve disponíveis no iTunes – sem qualquer indício concreto, contudo.
Mas o acordo, para além do seu nada negligenciável simbolismo, foi sobretudo ocasião para Steve Jobs lançar uma nova ofensiva. Num comunicado posto em linha logo no dia seguinte, Jobs aborda a questão dos DRM, dos “digital rights management”, desafiando as quatro “majors” da indústria discográfica, Universal, Sony-BMG, EMI e Warner, a porem fim aos dispositivos anti-cópia: “Imagine-se um mundo em que cada loja online venderia música livre de DRM em formatos abertos e licenciados. Num tal mundo, cada leitor poderia ter música descarregarrada de qualquer loja e qualquer loja poderia vender música disponível em qualquer leitor”. “Imagine...such a world” – Steve Jobs não desperdiçou a oportunidade de fazer uso próprio de um dos temas mais conhecidos do catálogo da Apple Corps, Imagine de John Lennon.
É um facto que não lhe faltam argumentos. “Em 2006, menos de 2 mil milhões de canções com dispositivo de protecção dos DRM foram vendidas, enquanto 30 mil milhões livres de protecção e DRM foram vendidas pelas próprias companhias”. Mas mesmo sendo os números exactos, há uma falácia, já que o aumento das vendas online está longe de compensar a quebra do comércio discográfico. Ora, há um outro “parâmetro”, uma variável face à qual nem dispositivos técnicos nem legais se têm mostrado suficientemente eficazes: a “pirataria”.
Tudo remonta à história do Napster, em 1998, essa invenção de Shawn Fanning, na altura um jovem de 18 anos, calouro da Notheastern University de Boston. A ameaça foi de tal ordem que finalmente, em Setembro de 2001, o Napster teve de fechar. Mas quer companhias informáticas, como a Apple Inc., quer discográficas, tinham ficado cientes, “pirata” que fosse, de um novo meio electrónico de difusão de música. E Fanning viria depois a transformar-se num exemplo de entendimento entre o “big business” e as forças disruptivas da Internet: ele próprio inventou um novo sistema “anti-pirataria”, obrigando ao pagamento dos direitos.
Com uma nova empresa e sistema, Snocap, mantém-se o tão temido sistema de partilha, “peer-to-peer”, mas em que as músicas com “copyrights” estão bloqueadas, ou disponíveis apenas em registos tecnicamente inferiores, com um anúncio de convite ao ouvinte à versão tecnicamente correcta pagante, fazendo entrar a publicidade no sistema de difusão; o prazo de armazenamento no leitor pessoal é, no entanto, limitado como é limitado o número de downloads, cinco, de um mesmo tema. Todas as quatro “majors” acabaram por aceitar o sistema.
A 8 de Maio, justamente no mesmo dia em que em Londres o tribunal daria razão à Apple Inc. versus a Apple Corps, o Los Angeles Times consagrava um editorial a este Napster’s New Target, assinalando como as possibilidades de escolha eram muito maiores que a de inúmeras rádios, cada vez mais em alinhamento com as grandes cadeias nacionais – e as play-lists, acrescente-se.
Face à “pirataria”, as soluções repressivas e administrativas mostram-se insuficientes. As mesmas bases tecnológicas que permitem às companhias novas formas de difusão, estimulam a imaginação de internautas e operadores a novas formas de “piratagem”. Desenham-se movimentos sociais e mesmo políticos (um Partido Pirata surgido há algum tempo na Suécia) no sentido da acessibilidade e há quem sustente, como Daniel Cohen, que numa sociedade pós-industrial, a clivagem entre “gratuito” e “pagante” toma o lugar daquela, herdada do século XIX, entre “público” e “privado”.
Se não os consegue levar de vencida, junta-te a eles – o mote, de que o exemplo Napster é também percursor, vale para as estratégias das grandes companhias face aos meios de difusão online, gratuitos que sejam, face à pirataria, e tomando nota do seu campo de expansão. Com publicidade, a Universal coloca o seu catálogo em linha – sendo que a mesma Universal tinha em tempos posto um processo de “cumplicidade” à Bertelsmann, BMG, por aquela, sendo uma das “majors” que colocaram um processo ao Napster, ter entretanto decidido também investir naquele –, assim como em França a Virgin e a Fnac. A Warner cedeu gratuitamente os seus clips ao YouTube e ao DailyMotion, a mesma via abrindo-se para a Universal e a Sony-BMG.
Nesta expansão de meios de difusão, a questão da incessante imaginação pirata não é todavia a única a colocar-se. Há outra, a da concentração.
A 13 de Julho passado, o Tribunal Europeu deu provimento a uma queixa da Impala, Independent Music Publishers and Labels Association, contra a autorização da fusão Sony-BMG: “Colocar 60.000 grupos de rock na Europa perante 60 directores artísticos cria estrangulamentos perigosos”, afirmou Patrick Zelnick, fundador da Naïve e presidente da Impala. Agora, quatro das mais importantes organizações ou instituições de direitos dos consumidores da Europa, Que Choisir da França, a Federação das Associações dos Consumidores Alemães e os provedores de consumo da Noruega e da Finlândia, põem em causa a associação exclusiva iTunes-iPod, abrindo um processo a fim de que a Apple “disponibilize antes do fim de Setembro de 2007 a interoperacionalidade, para permitir aos consumidores a livre escolha dos seus materiais de leitura dos ficheiros comprados em linha”.
É face a esta contestação que Steve Jobs dirige também os seus Thoughts on Music: “Muitas das preocupações com os sistemas de DRM surgiram em países europeus. Talvez que aqueles descontentes com a presente situação devam redireccionar as suas energias para persuadir as companhias a vender a sua música livre de DRM. Duas e meia das quatro grande companhias estão localizadas na Europa. A maior, Universal, é propriedade a 100% da Vivendi, uma companhia francesa. A EMI é britânica e a Sony-BMG é em 50% detida pela Bertelsmann alemã. Convencê-las a licenciar a sua música à Apple e a outros, livres de DRM, criaria um mercado verdadeiramente interoperacional. A Apple acolhê-lo-ia de todo o coração”.
O fim da disputa com a Apple Corps é um importante trunfo simbólico para a Apple Inc., tanto mais que a outra representava o exemplo maior, no volume dos direitos, de uma companhia discográfica detida por artistas. E é um passo consolidado no sentido no oligopólio Apple-iTunes-iPod, a menos que este novo exponencial exemplo de concentração seja objecto de uma decisão judicial europeia, como no tocante à Sony-BMG. Afinal, não se argumenta sempre com a “liberdade para escolher’?