Agora que o Centro de Beaubourg celebra o seu 30º aniversário, como agora que em Serralves está patente a proposta de revisão d’ Os Anos 80 – Uma Topologia, há a recordar que uma das marcantes exposições do Centro e da conjuntura cultural daquela década foi uma exposição que pouco ou nada tinha a ver com o conceito reconhecível de “exposição”, desde logo porque não apresentava obras de artes: Les Immateriaux, exposição de que foram comissários Jean-François Lyotard e Thierry Chapu, em 1985. De algum modo era também uma exposição prática do diagnóstico elaborado por Lyotard no célebre “relatório sobre o saber” (era esse o subtítulo) A Condição Pós-Moderna.
Não é contudo a reconsideração genérica dos anos 80 ou a revisão de Beaubourg e do modelo que constituiu que torna ora curial a evocação de Les Immateriaux, mas sim factos de actualidade e mesmo do quotidiano. Poucas foram de facto as propostas tão “antecipadoras” – para não dizer “proféticas”, o que seria um contra-senso com o estado das coisas que se constatava: “A nossa modernidade envelhece. Aquilo que o Ocidente tinha prometido à humanidade, o domínio do seu destino, pelo conhecimento e a emancipação, já não é credível. A revolução, as nossas ideologias da salvação, já não trazem resposta. Melancólicos, despedimo-nos do passado dos nossos sonhos. A nossa modernidade transforma-se”.
Pós-modernidade, modernidade tardia, modernidade reflexiva, o que se entenda, a nossa modernidade transformou-se, materialmente, ou i-materialmente. E talvez possamos dizer, como o signo mais expandido e quotidiano dessa transformação, que a nossa modernidade entrou em download.
Duas décadas passadas sobre o protótipo sugerido por Lyotard e Chapu em Beaubourg, um relatório sobre L'économie de l'immatériel foi entregue em Dezembro ao Ministro da Economia francês, que o tinha solicitado na convicção de que era tão necessário, e deveria ser tão marcante, como o famoso relatório Nora-Minc sobre a informatização da sociedade no final dos anos 70.
Mas poucos eventos terão tão proeminentemente condensado a tendência em curso à escala global, como o Midem, o mercado mundial da música que se realiza anualmente em Cannes, ora ocorrido, entre 21 e 25 de Janeiro. E que foi dominado pelo MidemNet, fórum de reflexão e debate sobre a música na internet, que teve como lema O Poder dos Consumidores.
Perante tal enunciado, tão programático e proclamatório, dir-se-ia que tão seguro de um “domínio do seu destino, pelo conhecimento e pela emancipação”, não pude precisamente deixar de evocar que em Modernes et après – Les Immateriaux (ed. Autrement), o livro publicado por ocasião da exposição, havia um texto, A propriedade, privada dos seus donos – o novo direito das obras.
Sabendo-se como um das tendências mais insistentes da era digital é a “pirataria”, afigura-se curial recordar alguns passos desse texto da autoria de Hubert Astier: “Desde Beaumarchais, o princípio que inspira o direito de autor é de ordem ‘genética’: o autor é como que procriador das suas obras, como um pai. É mesmo pai e mãe confundidos, já que se fala usualmente de gestação e de parto das obras. (...) Ora, este sistema tradicional dos direitos de autor, que tem perto de dois séculos, sofre hoje profundas transformações pelo impacto das inovações técnicas e das transformações económicas que são com frequência consequentes. (...) O direito de criação vê o seu campo estender-se a novos parceiros: produtores de filmes e discos, artistas e também empresas de comunicação audiovisual, que são difusoras; estende-se também a novos objectos, como os informáticos. (...). Esta expansão traduz uma imaterialização da nossa sociedade, em que a propriedade e a gestão dos objectos materiais se apaga perante a dos invisíveis” – isto foi escrito, recordo, em 1985.
As possibilidades digitais e a multiplicação exponencial de difusores, de algum modo a multiplicação de invisíveis, mais acentuaram ao longo dos anos 90 aquilo que, sendo uma possibilidade, não deixa também de ser alardeada como uma palavra de ordem, interactividade – e com isto estou-me a referir não tanto às virtualidades, mas à configuração do horizonte em que o consumidor pode escolher, como se a possibilidade fosse por si só constitutiva de poder: é o VOD, o “video on demand”, é a possibilidade de fazer downloads, por exemplo, não da totalidade de um álbum – equiparável a uma “obra” tal como foi concebida pelo seu(s) autor(es)- mas só de faixas, etc.
O Poder dos Consumidores, o lema do fórum do MidemNet, representa essa reafirmação profetista de que, afinal, os agentes do mercado – pois são esses os participantes do Midem – se colocam ao serviço do destinatário último.
E se o lema era já de si “profetista”, não o podia ser mais uma declaração feita na abertura: “A prazo, a música será gratuita. As receitas da indústria discográfica não serão provenientes da venda directa de música gravada, mas será entre, outras, a publicidade a financiá-la”. O profeta é Jacques Attali, eventualmente mais conhecido pelo conselheiro muito próximo de Mitterand que relatou minuciosamente a presidência num livro de preciso título Verbatim, mas também autor, em 1977, de uma obra original e importante, Bruits, um ensaio sobre a economia política da música. Acrescente-se que o seu mais recente livro é uma Brève histoire del’avenir, e este intento de fazer a história do futuro é suficientemente sintomático.
O que ora importa é sublinhar que a difusão de materiais ligeiros, e nomeadamente a generalização do eco-sistema desse instrumento de revolução, se alguma recentemente houve, global e de massas, que é o IPod, que essa difusão generalizada acarretou consigo uma nova formatação – termo no caso particularmente pertinente – da aspiração a uma “cultura gratuita”.
O entendimento e a reivindicação europeias da chamada “excepção cultural”, isto é, de que os bens culturais não são meramente mercantis, e como tal têm de ser protegidos no regime geral de livre comércio, não deixa de possibilitar um efeito colateral perverso: a ideia que o regime dos bens culturais está mirificamente acima do estado geral dos bens materiais. Acontece que os bens culturais não deixam de ser materiais (mesmo se depois “i-materializados”) e mesmo em muito casos mercadorias também. As indústrias culturais existem.
A cultura tem custos e direitos, e os eventos de livre acesso, fora aqueles de ordem tradicional, são excepcionais e resultam de decisões políticas-simbólicas e/ou de patrocínios – como o Dia ou a Noite dos Museus.
Acontece mesmo que as economias da cultura que podiam contribuir para certos casos de gratuitidade, por exemplo em mecenato ou patrocínio, ou eventualmente até por aplicação directa de IVA colhido em transacção de produtos culturais, essas economias não deixam de estar nalguns sectores enormemente afectadas pela Internet, e por partilhas de ficheiros não regulamentadas.
O aumento real dos downloads legais, se indica o caminho que a difusão musical certamente seguirá, de resto em todas as áreas, e não apenas no pop/rock, é largamente insuficiente face à queda vertigionosa de venda de CDs. Mais: é o eco-sistema do disco, da ligação material e táctil à fonte, que se desmorona, qual “discoclasmo”- para prafrasear o Biblioclasmo analisado por Fernando R. De La Flor –, feitos audiofragmentos quotidianos de deambulações. Como proclamar então tão só O Poder dos Consumidores?
Houve de resto no final de 2006 um acontecimento assaz simbólico deste crepúsculo do disco: o fim da Tower Records, a cadeia americana que, como nenhuma outra, representava a ideia de lojas em que se tinha o prazer de deambular, procurando ou inesperadamente encontrando discos, partilhando os entusiasmos com outros melómanos.
Muitos dos que não conhecem Los Angeles ignoram que Sunset Boulevard estende-se por quilómetros e quilómetros. O que restritamente se supõe ser esse Boulevard, com a mitologia associada, é uma zona mais restrita, Sunset Strip. E como no crepúsculo de Norma Desmonde no Sunset Boulevard, o filme de Wilder, aí mesmo, no Strip, se finou também a sede da Tower Records.
A modernidade em downloads tem também no mínimo a sua parte de melancolia.