Um acaso de calendário, o gesto de ir apontando datas na agenda do novo ano, fez-me encontrar, ao folhear o programa da temporada da Ópera de Paris, uma declaração de Rudolf Nureyev: “Devemos preservar a herança. Essa é a pedra angular. Isso não quer dizer que se devem reproduzir exactamente todos os passos originais, mas que a coreografia que nos foi transmitida deve ser o ponto de referência, a base de todo o trabalho. Nas suas memórias, Petipa disse que não esperava que os seus bailados sobrevivessem intactos, mas apenas que se mencionaria o seu nome. É uma maneira de atribuir a liberdade aos seus sucessores. Este tipo de coreografia deve ser considerado como uma pedra preciosa que é preciso polir de novo para que o seu brilho seja perceptível aos nossos contemporâneos”. A declaração é liminar: numa arte fundamentalmente patrimonial como o bailado clássico, a variação, a recriação, é ainda um outro modo de “preservar a herança”.
Eis que todavia, num quadrante de todo oposto, me deparo num recente número da revista Performance Research, vol. 11, nº 2, de Junho de 2006, com um texto intitulado “Preserving the Performance: Scholarship as Art?”, de Gabriele Brandstetter. E aflora a tentação de abordar o texto com alguma ironia: mas afinal a performance, no restrito sentido do termo, é um gesto susceptível de também ser “preservado”? Se as performings arts, em sentido lato, são do domínio do efémero, ainda mais intrinsecamente efémera – ou mesmo ontologicamente – é a performance no seu sentido restrito, enquanto acto que corresponde à sua própria produção, acção que é processo, não constituição ou feitura de uma obra.
Para retomar os termos do artigo, a questão não é só de facto de scholarship, não é meramente académica. Na “Performa 05”, primeira edição de uma bienal de “new visual art performance”, dirigida pela matriarca teórica do campo, RoseLee Goldberg, foi encomendado à matriarca da prática, Marina Abramovic, um conjunto de Seven Easy Pieces pelo Museu Guggenheim, retomando ou reactivando performances históricas de Joseph Beuys, Bruce Nauman, Vito Acconci, Gina Pane, Valie Export e da própria Abramovic. Ainda em tom irónico, é caso para nos perguntarmos se a prática da “reconstituição”, ora tão prolífera no campo interpretativo da música antiga e barroca se estendeu à “poiética” (“poiêtikê” de “poien”, fazer) antitética da radicalidade performativa.
Para além de todas as discussões e especulações, o exemplo, tanto mais relevante por directamente envolver figuras emblemáticas como Marina Abramovic e RoseLee Goldberg, supõe a necessidade de preservação de uma memória artística e cultural – e nesse aspecto indubitavelmente contradiz o princípio vanguardista “do passado façamos tábua rasa” e o próprio paradigma prescritivo da “originalidade da vanguarda”, um dos mais perenes “mitos modernistas”, nos conhecidos termos de The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths de Rosalind Krauss.
E para além de todas as discussões e especulações coloca-se a questão da própria memória da modernidade, não apenas numa estrita perspectiva académica, longe disse, mas também em termos da própria “estesis”, da percepção do sensível e da experiência da arte.
Importa tanto mais frisar este dado fundamental até porque na conjuntura cultural portuguesa co-existem duas insistentes tendências de sinal oposto: por um lado, a produção da nostalgia; por outro, uma sensibilidade não exactamente “modernista” mas antes que a modos de “modernaça”, na exigência do “up to date” ou na insistência de uma supostamente necessária e obrigatória “actualização dos clássicos”.
Se o bailado clássico pode ser considerado uma arte fundamentalmente patrimonial (embora não deixe de poder ser tido também como uma disciplina básica), a preservação da memória e a possibilidade de transmissão, e de suscitar a fruição dos espectadores, coloca-se de igual modo para a “modern dance” e depois.
E contudo, no respeitante a obras tão cruciais e magníficas como, por exemplo, Diversions of Angels de Martha Graham, A Pavana do Mouro de José Limon, Aureole de Paul Taylor ou Arcade de Merce Cunningham, corre-se o risco de apenas perdurar o fio das memórias daqueles de nós que tivemos a possibilidade de como espectadores as fruirmos. E esse é um dado que não deve, não pode deixar de ser considerado, no que concerne às chamadas “companhias de repertório”, e por maioria de razões “companhias nacionais”, que, nos debates subsequentes à extinção do Ballet Gulbenkian, até houve quem prematuramente declarasse anacrónicas ou em exclusivo votadas ao tradicionalismo clássico.
Sucede que um problema inédito, ou que nunca tinha sido equacionado, se está agora a colocar em relação a esse repertório da modernidade. Tem sido chamado “the Graham debacle”, e origina-se na disputa entre a Martha Graham Company e o herdeiro da coreógrafa, Ronald Protas. Mas o que poderia parecer um particular caso jurídico, ainda que intrincado, indicia afinal uma vasta situação. No New York Times do passado dia 7, um alarmado artigo, “When the coreographer is out of the picture”, dava conta de uma situação inaudita: por causa da disputa Graham, dois criadores como Merce Cunningham e Paul Taylor descobriam-se pelo menos dubitativos: mas afinal eles ou alguém é detentor do “copyright” das suas próprias obras?!
Dir-se-á que é um “quiproquo” jurídico. Mas o inaudito de uma situação em que alguém como um Cunningham se descobre na dúvida de saber “será que as minhas obras são [juridicamente] minhas?!” não deixa de ser o corolário ainda de um postulado programático do modernismo histórico: as obras identificam-se estritamente com os seus autores e são esses e só esses que as preservam.
Esse é um postulado que aliás, em última análise, é possibilitador de uma passagem para um campo em que já nem se pode falar com propriedade de identificação obra/autor porque, no caso da restrita concepção da performance, já nem se pode falar de obra mas tão só de acção e sujeito – passagem que aliás teve marco histórico nos happenings do Black Mountain College, em que um dos participantes foi precisamente Merce Cunningham. E com isso ocorreu a dissolução na transitoriedade do mais definitivo efémero.
O gesto de reactivar performances históricas é certamente um exercício paradoxal e talvez mesmo revivalista – embora enquanto gesto concreto deva ser mais interessante que espectáculos em que se lêem os relatos recolhidos num livro como The Artist’s Body. No seu paroxismo, esse gesto não deixa de se reinscrever no princípio geral de todas as performings arts: a obra é uma potencialidade que se concretiza numa realização ou interpretação concreta, quando é presença real e existe não apenas em si mesma mas também nos impactos de recepção que possibilita, o que na música certamente, na grande maioria das vezes no teatro e até muitas vezes na dança, supõe também que a obra se realiza quando “escapa” ao estrito campo do seu autor – quando foi feita obra real por outros, quantos os espectadores puderam dela ter a concreta experiência.
E então perguntar-se-á: e se afinal, diferentemente do postulado provindo da “modern dance”, as obras coreográficas pudessem ser concretizadas e difundidas fora do âmbito estrito das companhias organizadas em torno do seu autor, se quiçá pudessem inclusive integrar companhias de repertório?
Não só haveria outras possibilidades de transmissão da memória, como se abriria o horizonte das hipóteses de fruição – e também de formação, em vez de ignorância histórica tornada um dos mal-entendidos que alimentam tanta proposta “modernaça”.