A propósito da estreia, na Gulbenkian, de Scardenelli-Zyklus de Heinz Holliger, sobre poemas de Hölderlin, para flauta solo, pequena orquestra, coro misto e banda magnética
Luz do amor, iluminas tu também os mortos?
Sinais de um tempo melhor, brilhais na minha noite?
Friedrich Hölderlin
Lamento de Ménon por Diotima
Hölderlin, Hölderlin/Scardanelli – em 1807, aos 36 anos, sofrendo de uma grave perturbação mental, o autor de Hyperion e dos Hinos foi recolhido na casa de um admirador, Ernst Zimmer, um carpinteiro de Tübingen; aí, solitário numa torre, atribui-se identidades, nomes, o mais reiterado dos quais sendo o de Scardanelli, assinatura de poemas escritos entre 1833 e 1843, mas datados de 3 de Março 1648 a 9 de Março 1940 (!), e aí permaneceu até morrer aos 73 anos.
Hölderlin, Scardanelli, Holliger. O Scardanelli-Zyklus de Heinz Holliger (n.1939) é uma obra extraordinária e, de algum modo, das mais paroxísticas e também decantadas. Talvez possamos aproximarmo-nos da sua singularidade perguntando(-nos) qual é o seu Tempo, ou de onde provém, no sentido da inscrição estético-histórica. É reconhecivelmente uma obra contemporânea, e mesmo situável, sem margem para dúvidas, na descendência das correntes que se constituíram como vanguarda, primeiro com Schönberg, Berg e Webern,depois com Stockhausen e Boulez. E, no entanto, é também uma obra ucrónica, desde logo no peculiaríssimo diálogo/recriação com Hölderlin/Scardanelli, mais decantadamente com as inscrições/transfigurações de materiais de Bach ou Mozart que nela figuram, mas ainda também porque construindo-se a partir do Ciclo das Estações, engendra um tempo hipnoticamente hierático, suspenso e circular. Como se fosse infindável...
E de facto, comecei a conhecer (não o sabendo ainda na altura) o projecto de Scardanelli-Zyklus já há mais de 20 anos, num tempo que pode parecer tão distante quanto historicamente era uma Era já revoluta. Era Outono em Varsóvia, outono sombrio, da ditatura burocrático-militar do “socialismo real”, não muito depois de ter sido levantada a lei marcial. Era o ano de 1985. Foi-me uma tal surpresa descobrir aquela Turm-Musik, a “música da torre”, da torre de Hölderlin – alguns das peças que compõem o Zyklus, alguns dos comentários instrumentais, como o siderante Glockenalphabet, provêm directamente da Turm-Musik, em que se estabelecia também a relação Hölderlin-flauta, pois aquela era o instrumento que o poeta praticava.
E foi-me tanto mais uma surpresa e uma descoberta imensas, porque sendo Holliger um tão reputado instrumentista, um tão célebre oboísta, a obra nada tinha a ver com o tipo de virtuosidade que fora característico dos intérpretes-compositores, antes se erguia majestosa e magmática, como algo de precioso e depurado.
Scardanelli-Zyklus, enquanto tal, foi estreado nesse ano de 1985 – um ano depois, note-se, desse momento excepcional que foi a sucessão num curto espaço de tempo, três meses, das primeiras audições de Un Re in Ascolto de Berio, Prometeo – La Tragedia dell’Ascolto de Nono e Répons de Boulez, na sua versão “terminada”, Répons sendo seguramente uma obra construída também em função da variável “escuta”.
Para seguir ainda o fio pessoal da memória – a memória sendo em qual caso um dos traços fundamentais da poética de Holliger – conheci o Scardanelli-Zyklus enquanto tal em 1991, a gravação do disco na ECM tendo-se logo sucedido, ocorrendo a publicação em 1993. Sucedeu-me então chamar a atenção para que, se o registo discográfico passava a ser a "doxa", a ordem das peças poderia ser alterada em cada concerto. Mas nem só isso sucede. Sei agora que ainda há pouco mais de seis meses, Holliger introduziu alterações, mais de trinta anos decorridos sobre o início do seu diálogo com Hölderlin!
Disse-me uma vez Boulez, de quem tantas vezes sucedeu conhecermos as obras in progress: “O último curso que fiz no Collège de France, antes de partir, foi sobre ‘O acabado e o inacabado’. Eu não penso que uma obra esteja ‘acabada’, ela está sempre ‘inacabada’, mas há um momento em que sinto que está ‘closed’.
Curiosamente, da última vez que estive em Viena [esta conversa ocorreu em 2000], havia uma exposição de Cézanne com o título ‘Le fini et le non-fini’, o que me parece muito pertinente, porque há quadros deles, sobretudo do período que antecedeu a sua morte, que evidentemente estão datados, mas sobre os quais nos podemos perguntar se estão verdadeiramente ‘acabados’ ou se houve circunstâncias queo levaram a dá-los como ‘terminados’”.
A propósito, há um evidente paralelismo, com vinte ou, agora, quarenta anos de intervalo, entre o que foi o mais dilatado work in progress de Boulez, Pli selon Pli – Portrait de Mallarmée e o Scardanelli-Zyklus. Mas no paralelismo se evidencia também a diferença: enquanto uma obra sobre o Livre de Mallarmée, pela própria natureza do material enquanto projecto, nunca poderia em rigor estar acabada, teria antes de ser dada como closed ou terminada, a estrutura do Scardanelli-Zyklus é em rigor cíclica, com as diversas partes corais sobre as quatro estações, e os exercícios (übungen) instrumentais, numa sucessão virtualmente infindável na sua circularidade. Esse é aliás um devir caracteristicamente romântico – a obra é um devir, no horizonte de um absoluto.
Retome-se pois a perspectiva da ucronia (e da inerente utopia) de uma obra como Scardanelli-Zyklus e da poética composicional de Holliger. Se apontei um reconhecimento na descendência das correntes que se constituíram como vanguarda, primeiro com Schönberg, Berg e Webern,depois com Stockhausen e Boulez, a filiação não supõe os estritos quadros formais e muito menos o conceitos de vanguarda, as diversas actualizações programáticas de música do futuro.
Há por certo um alto grau de formalização na obra. Tomemos a título de exemplo uma das peças instrumentais, o Ostinato Funebre. É uma passacaglia em duas partes, retomando a Música Fúnebre Maçónica de Mozart. Essas duas partes têm 37 e 36 compassos – 36 anos tinha Hölderlin quando recolheu à torre em Tübingen, 37 anos aí passou. A formalização é alegórica, como as obras maçónicas de Mozart.
Contudo, como em Kurtág (foram aliás alunos de Sándor Veress), não se deixará de notar em Holliger uma assimilação de Webern, de todo diferente daquela feita pelo serialismo integral do pós-guerra. Assimilação no sentido da rarefacção – que de algum modo, assinale-se, é também a característica que fez ambos os compositores aproximaram-se de Beckett, Holliger sendo o autor de três dramas musicais baseados em obras daquele, Come and go, Not I e What where. Mas, no seu caso, também certamente aproximação ao Webern do expressionismo lírico, anterior à sistematização dodecafónica; um poeta como Trakl é aliás outra importante referência para ele.
Há em Holliger uma desmesura do gesto, em que se articulam as referências ao romantismo e ao expressionismo, a des-razões como as de Hölderlin e Walser (outra ópera sua é sobre a Branca de Neve do último), mas combinada com uma decantação de que é a própria consciência histórica do material, ou consciência da História em geral.
Ao mesmo tempo que Holliger, um outro compositor se acercara também da memória de Hölderlin: Luigi Nono, com Fragmente – Stille, an Diotima, para quarteto de cordas, obra essa tão “weberniana” no mesmo sentido em que tal herança existe em Holliger. E o Prometeo é uma tragédia reescrita, sem palavras e vozes, como Hölderlin retomou as tragédias clássicas. E na historicidade dos materiais existe uma ucronia, em que ao menos interrogadamente se coloca uma hipótese de utopia.
A propósito do Scardanelli-Zyklus, cita Peter Szendy, num texto incluído no livrete do disco, uma expressão de Paul Celan, o Cristal da Respiração. É difícil sintetizar melhor – para mais vindo de outro dos autores que é referência fundamental para Holliger – como nesta obra está presente o mais puro cristal decantado do Poema, afirmado com o mais vital sopro da respiração.
Por desacreditada que se diga estar a ideia de beleza, uma obra como Scardanelli-Zyklus convoca-nos para um quadro de escuta de tal modo apartado, que há que reiteradamente dizer que é uma obra extraordinária e poder ouvi-la uma experiência única.
E sempre que alguém me perguntou o que havia absolutamente a não perder na presente temporada musical 2006/07, a resposta foi: 26 de Fevereiro, Gulbenkian, o Scardanelli-Zyklus de Heins Holliger.