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DERIVAS 2006 – 2008

Mr. Ornette Coleman, Prémio Pulitzer de Música 2007 (II)

2 de Maio de 2007 – por Augusto M. Seabra

Cascais, 20 de Novembro de 1971 – Luis Villas-Boas concretizava finalmente o seu sonho de um grande festival internacional de jazz em Portugal. A ordem prevista das apresentações é alterada por exigência de Miles Davis que subiu ao palco, no balanço do eléctrico e frenético Bitches Brew, com um septeto incluindo nomeadamente um senhor chamado Keith Jarrett; só o núcleo duro dos mais devotados ao jazz teriam conhecimento daquele pianista, que no entanto até já viera antes a Cascais, em 1967, integrado num quarteto de Charles Lloyd (esse outro músico “inesgotável”, que ainda agora passou pela Casa da Música e pela Culturgest), mas que de algum modo começaria a ser “ele próprio”, em termos do público reconhecimento, com o álbum que logo depois gravaria, Facing You. E se Miles exigiu abrir, Ornette Coleman não quis ficar para o fim e actuou a seguir – Ornette Coleman, com Dewey Redman (saxofone-tenor), Charlie Haden (contrabaixo) e Ed Backwell (bateria).

A dedicatória feita por Haden antes de Song for Che, “to the liberation movements of Angola, Mozambique and Guiné” daria brado, levantando o público ao rubro e levando o contrabaixista à Pide. A politização não deixava de ser desde logo inerente à circunstância e aos quadros gerais de recepção, pois que a estética radical do free jazz, que Ornette tinha proclamado, fora associada ao quadro das lutas cívicas – Free Jazz/Black Power sendo mesmo o título de um livro influente, de Phillipe Carles e Jean-Louis Comolli, e também revelador da recepção europeia.

É difícil dizer do incomensurável choque que foi ouvir nessa noite sucessivamente Miles e Ornette (e da emoção, na noite seguinte, por ouvir Theolonious Monk, no “all stars” dos Giants of Jazz). Foi desses choques que abalaram os códigos de reconhecimento e os modos de percepção ou, por assim dizer, as possibilidades de mundivivência.

Antes da digressão europeia desse Outono de 71 já tinham ocorrido as sessões de gravação de Science Fiction e meses depois ocorreriam as de Skies of America, duas outras propostas marcadamente “experimentais”, mais sinfónica a segunda.

Agora, Soung Grammar é o primeiro trabalho de Ornette em dez anos. Põe fim ao mais longo hiato na sua carreira, ao mais longo mas não o único; por exemplo, em 1962, no final do período “revolucionário” da grande declaração do free, um quarteto de cordas fora convocado no Town Hall Concert, e depois fora um silêncio de três anos. Mais tarde, os citados Science Fiction e Skies of America, ou depois Body Meta, foram todos o rasgar de novas perspectivas. Com maior ou menor sucesso pontual, sempre Ornette Coleman foi um músico em movimento, e em reflexão também.

Nos termos dessa reflexão, mais do que propriamente a música importa o som (numa radicalidade conceptual que de algum modo, estando nos antípodas, é paralela à de Cage). Ornette é alguém fascinado pela Ideia, e antes do mais por uma noção intuitiva de uma ideia de som, na desconfiança das regras do discurso verbal.

Quando da entrega do Grammy li no Los Angeles Times uma informação que desconhecia: que Jacques Derrida teria uma vez feito a introdução a um concerto de Ornette. Pelo menos, faz sentido: um e outro são casos de crítica radical do fonocentrismo.

O que a Ornette importa, antes do mais, é uma ideia de som consubstancial à própria existência humana, com o que de “místico” ou quase supõe esta experiência “Para mim, a ideia é tudo. A ideia é tudo que a nós humanos é possível respeitar e em que é possível incluirmo-nos, com que nos podemos relacionar com tudo o que vive e existiu. A ideia é o que a religião não consegue ser. Para mim a música é a única substância em que qualquer um pode participar da ideia”. Daí a desconfiança não só do império da linguagem, como também dos espartilhos à enunciação musical do som suscitados pela notação ocidental (um ponto claramente comum com Cage) e à codificação de um estilo – ou, parafraseando um outro, que no caso é Schoenberg, interessa-lhe a Ideia que não o estilo.

Estas digressões não são espúrias porque se Ornette tem antes de mais uma concepção intuitiva da música, a sua prática não é contudo tão só intuitiva. Pelo contrário, ele não tem deixado de elaborar os conceitos básicos do seu trabalho e da pesquisa, sobretudo a noção central de harmolodics que, como se infere, visa agregar as diferentes noções de “harmonia” (vertical) e de “melodia” (horizontal).

Sound Grammar é uma proposta liminar e radical. É como que um outro manifesto, e nunca Ornette enunciou tão claramente os princípios básicos da sua pesquisa, expostos no título. Prologando, e radicalizando, concepções que vinham já de trabalhos nos anos 60, e desde logo desse momento registado no citado Town Hall Concert de 1962, em trio com David Izenzon no contrabaixo e Charles Moffet na bateria (mais a tal participação de um quarteto de cordas), Ornette “investiga” e investe noções de uma pulsão básica e fundadora, apoiando-se num trio com o seu filho Denardo em percussões e Gregory Cohen e Tony Falanga em contrabaixos – de um som universal nos fundamentos da sua pulsão, enquanto a linguagem é particular e diferenciadora. Particularmente elucidativa é aliás a presença dos dois baixos, um em pizzicato, outro com arco, quais duas imediatas formas, físicas inclusive, de configurar esses fundamentos, o “baixo” de uma gramática de enunciação musical.

Com Sound Grammar de “Mr. Ornette Coleman”, como ele se apresenta, o Prémio Pulitzer de Música foi finalmente atribuído fora da área canónica, e finalmente atribuída a um dos grandes inovadores que fizeram da América também uma nova terra musical. Era tempo!