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DERIVAS 2006 – 2008

São Carlos, os anos Pinamonti (II)

27 de Março de 2007 – por Augusto M. Seabra

É matéria importante de reflexão cultural um balanço dos anos Pinamonti (2001-2007).
Pela minha parte, fui sempre crítico da conjugação das responsabilidades de gestão e da direcção artística, tal como estipuladas na lei em vigor. Mantenho integralmente essa posição.

Não impede esse entendimento que no trabalho de uma direcção artística ocorrem os problemas de gestão propriamente dos corpos artísticos do teatro, agravados pelos continuados problemas de limites de instalações – que tanto afecta o trabalho de ensaios e programação e, consequentemente, o número de espectáculos possíveis de realizar – e pelos constrangimentos orçamentais que se fizeram sentir ao longo destes anos.
Esses são problemas que permanecem e permanecerão. O que agora sobremaneira se impõe é ponderação dos resultados artísticos e culturais e impactos públicos da direcção que cessa.

A fruição de espectáculos, mesmo a sua apreciação crítica, vai-se sucedendo. Importa neste momento ir além das apreciações pontuais e proceder a um trabalho de rememoração. Não menos importa ter presente que se a apresentação regular de espectáculos de ópera é a faceta pública imediata e tradicional do São Carlos, existem outras componentes, como as desde logo motivadas pela actividade de concertos da Orquestra Sinfónica Portuguesa, bem como as que genericamente estão definidas na lei.

Começaria assim por recordar que em 2001 a temporada se iniciou com a presença de um dos maiores compositores contemporâneos, György Kurtág, e a primeira ópera apresentada foi o Boris Godunov de Mussorgski, de há muito ausente do teatro. E recorde-se que nessa temporada houve o Manfred de Schumann, com direcção dramatúrgica de Luís Miguel Cintra, a célebre produção da Ópera de Houston de Four Saints in Three Acts de Gertrud Stein/Virgil Thomson, com encenação de Bob Wilson, em estreia na Europa Continental, um dos grandes musicais de Gershwin, Lady Be Good, no Centro Cultural de Belém, ou A Flauta Mágica de Mozart, na encenação admirável de Stéphane Braunschweig para o Festival de Aix-en-Provence.

Para que seja bem presente, recordo de anos sucessivos, e para além do maior apreço e algumas reservas da minha parte, mas em qualquer caso exemplos relevantes de trabalho de programação artística, produções como as de A Feiticeira de Tchaikovski, o Werther de Massenet na memorável encenação de Graham Vick, as primeiras apresentações em Portugal de O Cavaleiro Avarento de Rachmaninov e de Uma Tragédia Florentina de Zemlinsky (num espectáculo conjunto) bem como, e sobretudo, de Neither de Morton Feldman (compositor também objecto de um ciclo), com uma espantosa realização musical da solista Petra Hoffman e de Orquestra particularmente motivada pela direcção de Emilio Pomàrico, um Stiffelio que entrou nos anais dos grandes momentos verdianos do teatro, O Rapto no Serralho de Mozart na histórica encenação de Giorgio Strehler, ou muito recentemente o Wozzeck de Berg, numa ainda mais superlativa encenação de Braunschweig e uma direcção dramática de Eliahu Inbal, e, evidentemente, a produção em curso de O Anel do Nibelungo encenado por Vick que tanta atenção tem suscitado.
Mas não menos importa referir as estreias em Portugal do Requiem de Ligeti e dos Gurrelieder de Schönberg, o exaltante concerto com Juan Diego Flórez ou A Canção da Terra de Mahler dirigida por Jeffrey Tate, ou uma iniciativa como as Paisagens do Teatro Contemporâneo.

Poderia prosseguir...

Ocorre, todavia, citar um outro tipo de trabalho. Ouve-se agora, por exemplo, falar de “ópera para crianças”. Mas o São Carlos foi nestes anos colaborador ou co-produtor de espectáculos como A Casinha de Chocolate, versão portuguesa do Hänsel und Gretel de Humperdinck no Trindade, de A Floresta de Eurico Carrapatoso no São Luiz, ou de iniciativas da Culturgest como o recente Pollicino de Henze.

Importa tanto mais referir esses exemplos, não só pelo seu tipo de vocação particular, como também sendo sintomáticos de uma atitude de cooperação e de co-produções com outras entidades que não pode deixar de ser assinalada na realização dos objectivos fixados ao teatro nacional de ópera, como fora do campo operático há, entre muitos factos, de referir a intensa participação nas comemorações de Luís de Freitas Branco e Lopes-Graça.

Há também por certo outros aspectos a equacionar. Estruturalmente persiste o problema da Orquestra Sinfónica Portuguesa e da sua temporada de concertos. A inclusão de intérpretes portugueses na programação de ópera, tendo sido recorrente, não deixou de ser casuística, sem a prossecução da política que parecia enunciada na escolha do elenco de Four Saints in Three Acts, como poderia ter havido maior continuidade e rigor de escolha na apresentação de óperas de compositores portugueses, o que é uma das missões do Teatro, ou teria sido desejável uma política mais sistemática de encomendas de obras novas e sobretudo capacidade de planear devidamente as suas apresentações.

Sabendo ainda dos custos acrescidos e das dificuldades de programação e de gestão de meios a que obriga a ópera barroca, essa é uma área de tal modo fulcral que a sua inclusão nas temporadas pecou por tardia. Houve certamente omissões, e algumas até se deduzem das próprias linhas de programação, como as de Capriccio de Richard Strauss ou de Lady Macbeth do Distrito de Mtsenk de Chostakovich, que continuam inéditas em Portugal, bem como de óperas de Janácek e Britten.

Referiria contudo duas questões que estavam enunciadas no próprio programa de acção de Paolo Pinamonti. Uma, como já disse, foi a da falta de produções sistemáticas de elencos sobretudo com cantores portugueses e importantes responsáveis artísticos internacionais, o que afinal se ficou por Four Saints in Three Acts. A outra foi o anunciado desejo de “abrir o teatro à cidade”, que depois foi afinal sendo restringido ao longo do tempo, mas que acabaria por estar também subjacente a esse facto marcante e emocionante que foi a projecção para o exterior de O Ouro do Reno e da Valquíria.

Muitas vezes, para além do que supõem aqueles que são apenas regulares espectadores de ópera, há importantes questões a definir, desde logo o estatuto e condições de trabalho e apresentação da designada Orquestra Sinfónica Portuguesa, como também uma política de produções em menor escala que, entre outros aspectos, possibilitem itinerâncias e complementos de formação e profissionalização a jovens cantores.

Sem prejuízo de continuar a defender a separação das competências de gestão das artísticas, entendimento que agora estes anos não deixaram a meu ver de continuar a confirmar, é óbvio não só que, face aos objectivos fixados e aos meios disponíveis, os anos Pinamonti foram dos mais frutuosos do teatro, como também que, se superiormente equacionados os meios, a experiência e as capacidades de direcção artísticas de Paolo Pinamonti eram as mais adequadas para prosseguir a renovação segura do São Carlos. O sucesso público destes anos é indesmentível, e desde logo nos números de frequência do teatro, mesmo que outros factores, para além dos quantitativos, devam sempre ser ponderados.

Na despedida de Paolo Pinamonti impunha-se assim uma reflexão global. E continuar a ter presente a advertência: “A ópera está hoje próxima da Rocha Tarpeia. O seu triunfo aparente e por vezes arrogante não deve dissimular que há perigos à espreita”.