Remix é um conceito consagrado nos processos artísticos e culturais, literalmente nova mistura de elementos pré-existentes, em termos mais latos denotando processos genéricos de reciclagem.
Se considerarmos o campo da música pop, constatar-se-á que o remix é uma prática insistente no hip-hop e genericamente nas músicas de dança, mas também que a agregação de imagens pré-existentes é bastante corrente nos vídeos musicais.
Se mudarmos de campo de observação, para o cinema ou para as artes visuais que implicam imagens em movimento, o conceito é o de found footage – de facto muito anterior.
Numa genealogia directa, poder-se-á dizer que a prática sistemática de found footage remonta aos trabalhos de Bruce Conner, em concreto a A Movie (1958), obra cujo título, qual sans titre, é emblemática do anonimato autoral das imagens colhidas e remontadas. Se Conner, Ken Jacobs, Malcolm Le Grice e outros autores, sobretudo ligados ao Anthology Film Archive, um dos pólos do underground, e à corrente dita de structural film, sistematizaram um procedimento e uma estética, os usos de found footage são ainda assim bastante anteriores, quase se diria que desde os primórdios do cinema.
Um pioneiro como Adrian Brunel afirmou-se como caso à parte no cinema inglês logo desde finais dos anos 10. Desde cedo, desde que o cinema se tornou numa prática industrial corrente, que se constituiu um reportório de sequências e de stock-shots: cenas de guerra, de baile, navais, etc. Usualmente uma tal prática era parte das economias de produção; com Brunel, e por meio de uso criativo dos intertítulos, o recurso aos stock-shots tornou-se propriamente paródico e proposta estética.
Coincidência ou não, este exemplo pioneiro foi contemporâneo da eclosão do dadaísmo, das assemblages e fotomontagens, da dissolução da individualidade autoral em cadavres-exquis, enfim do ready-made de Duchamp, tudo práticas e reconfigurações artísticas de que se pode aproximar o uso de um material anónimo impresso em película pré-existente.
A consagração dos princípios da montagem pela vanguarda soviética dos anos 20 foi, em potência pelo menos, possibilitadora de uma expansão de tais práticas, em concreto com a metodologia do Kino-Pravda de Dziga Vertov, mas também com os filmes de compilação de Esfir Schub, uma metodologia que muitos anos depois, a partir de meados dos 60, seria retomada pelo cineasta arménio Artavazad Pelechian.
O uso de found-footage enquanto prática crítica seria retomado por posicionamentos estéticos que talvez se preferissem proclamar de algo como “anti-cinema”, o letrismo e o situacionismo. Le Film est déjà commencé? (1951) de Maurice Lemaître, Sur le passage de quelques personnes à travers une assez courte unité de temps (1959), Critique de la séparation (1961) ou La Societé du Spectacle (1973) de Guy Debord, são construídos enquanto apropriações de imagens sujeitas a um comentário crítico, dito em “off”, por uso de intertítulos, de intervenções e incrustações directas na película, de dissociações e desfasamentos das bandas de imagem e som. Num extremo de paroxismo, com o risco de se confundir com o exercício da derisão gratuita, René Vienet apropriou-se de exemplos de géneros tidos “artisticamente” como menores, o filme de artes marciais (karate) e porno, em La Dialectique peut-elle casser des briques? (1972) e Les Filles de Kamara (1974), para exercícios de deslocação ou recontextualização do sentido, pelos intertítulos e comentários.
A consideração das práticas de found-footage implica necessariamente uma obra seminal que, no tocante à metodologia, nem em rigor corresponde aos preceitos consagrados no conceito: Unsere Afrikareise (1966) de Peter Kubelka. De facto o material foi filmado pelo próprio Kubelka durante um safari. Mas o que era suposto serem imagens promocionais de turismo transformaram-se numa alegoria da visão ocidental, os turistas de A Nossa Viagem Africana comportando-se como dominadores/apropriadores.
Através destes variados exemplos históricos, desde o uso de stock-shots por Adrian Brunel, pode verificar-se que a noção de arquivo é recorrente aos usos de found-footage. Os filmes do holandês Peter Delpeut são disso ainda um outro exemplo particularmente saliente. Lyrisch Nitraat (1991) e depois Diva Dolorosa (1999) são compilações de excertos recuperados de filmes mudos, com a presença das primeiras divas, Lydia Borelli ou Francesca Bertini. A prática da restauração, da nova presença de imagens degradadas, confere a esses filmes um halo aurático. No entretanto, Delpeut realizou também Forbidden Quest (1993), em que deslocou material de arquivo para a construção de um mocumentary, um falso documentário com algumas imagens adicionais, relatando uma pretensa expedição para encontrar uma passagem subterrânea entre os dois pólos.
A “questão aurática”, se assim lhe podemos chamar, traça uma linha de demarcação nas intersecções actuais entre as artes visuais e o cinema, e a found-footage em particular. As obras de um Douglas Gordon, como 24-Hour Psycho, são exemplo de uma apropriação em que é fundamental a aura do material apropriado. De um ou outro modo, mais ou menos eminentemente crítico, aproximando-se de um projecto de remake noutro quadro, ou deslocando o maquinismo para a prevalência do set e do estúdio, a noção de aura está presente nas obras de Pierre Huyghe, Stan Douglas, Tacita Dean ou mesmo James Coleman.
Pelo contrário, o trabalho propriamente sobre o arquivo e sobre este enquanto depósito de ruínas é axial aos filmes da dupla Yervant Gianikian & Angela Ricci Lucchi e aos de Gustav Deutsch, este em particular na série, filmes e instalação, Welt Spiegel Kino, recentemente apresentada na Solar – Galeria de Arte Cinemática de Vila do Conde.
Também na exposição de Ben Callaway actualmente patente na Culturgest em Lisboa se reencontra, em especial em Version, uma noção de arquivo que, todavia, ao contrário dos citados exemplos de Gianikian & Ricci Lucchi ou Deutsch, não decorre de uma catalogação sistematizada, mas de um gesto sobre a arbitrariedade dos materiais, como se um anonimato reiterado desses conferisse à sua concatenação uma característica sublinhada de reciclagem. Version – remix, ou talvez o modo último de apropriação, um palimpsesto, ou, como a definiu Craig Owens, uma alegoria: “a alegoria torna-se o modelo de todos os comentários, de todas as críticas, na medida em que estes têm a ver com a re-escrita de um texto original nos termos do seu significado figurativo. A imagem alegórica é uma imagem de que nos apropriámos; quem escreve alegorias não inventa imagens, confisca-as, reivindica o direito daquilo que tem um significado cultural e coloca-se como seu intérprete”.
Dois pólos portanto: a reconstrução de uma ideia de Mundo, tal como nos seria dado a ver por fragmentos re-encontrados de filmes em Gustav Deutsch; o processo interpretante de uma reciclagem em Ben Callaway. As potencialidades da found-footage em qualquer caso.