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DERIVAS 2006 – 2008

Rock 2007: o ano das re/uniões (II)

2 de Janeiro de 2008 – por Augusto M. Seabra

É particularmente interessante notar que este regresso em força na cena pop/rock ao longo de 2007 daqueles que para os padrões etários vigentes nessa mesma cultura pop/rock são oldies ou mais que isso (alguns dos que voltaram, Led Zeppelin, Black Sabbath, etc., tinham saído de cena tidos como “dinossauros”), ocorreu logo após aquele que foi não apenas mais um outro “fenómeno”, desses que nessa cultura ou subcultura ocorrem com notória velocidade, mas mesmo uma mudança de paradigma, ou como tal apontada: a ascensão e consagração dos Arctic Monkeys em 2005/06, esses quatro adolescentes de Sheffield que se deram a conhecer através da Net, do sítio social MySpace, assim se tornando o paradigma de uma geração, da do-it-yourself generation.

As subculturas juvenis não surgiram nos anos 1950: o que então sucedeu foi sim o encontro entre essa uma designada “cultura juvenil” e as indústrias culturais de massas – e foi o rock’n’ roll. As abordagens sociológicas tradicionais da juventude, de matriz estrutural-funcionalista, na esteira dos trabalhos de Talcott Parsons, analisaram as “subculturas juvenis” como processos etários e sociológicos de transição, quando não mesmo como uma “anomia”. Sucede que as marcas do que começou por ser uma cultura de diferenciação quando não mesmo de oposição, de “conflito de gerações”, se prolongaram ou tornaram estruturais nos “baby-boomers”.

Com isso sucede também que enquanto todo o discurso da pop, e nomeadamente o discurso crítico da música pop, se alicerça em noções como “efémero” e “novidade” (sempre uma após a outra, sejam músicos, sejam tendências, com uma variedade de léxico aliás difícil de seguir para um observador exterior, tal a velocidade dos conceitos), de facto se constituiu um património.
Disso mesmo houve dois exemplos eloquentes neste mesmo ano de 2007: a exposição Rock’n’Roll 39-59 na Fundação Cartier, em Paris, remontando às raízes da cultura, e a comemoração do 40.º aniversário do álbum Sgt Pepper's lonely hearts club band dos Beatles, autêntico objecto de uma mitologia contemporânea: por mais que se explique que não foi o primeiro “álbum-conceptual”, ou que se possa argumentar que, entre Revolver antes e o duplo White Album, nem sequer é o melhor dos Beatles, a sua posição de n.º1, qual Citizen Kane da pop, está firmemente consagrada.

Há contudo, a propósito, um factor que importa deveras assinalar: por mais que o tal “discurso pop” se continue a comprazer com o formato da “canção”, o certo é que o dito long-playing, LP, já de si é um suporte de outra duração, eventualmente de outro tempo e “resistência física”. A prodigiosa longevidade dos Rolling Stones não é só devida à resistência e persistência física dos seus elementos, é em grande parte devida ao facto de eles se terem mantido activos até aos anos 1980, momentos em que a passagem ao suporte digital, do vinil a CD, deu azo ao início das reedições sistemáticas das discografias.

Criou-se uma persistência da memória, uma tradição própria da pop. Alguns dos grupos actuais inspiram-se em anteriores e, qual ricochete, eis que então estes reaparecem – caso dos Gang of Four, reconstituídos depois de terem ouvido a sua “descendência” nos Franz Ferdinand e outros.

Mas mais: como num repertório clássico, proliferam as tribute bands, nalguns casos retomando quase mimeticamente grupos como os Beatles ou os Pink Floyd. “O rock tornou-se a música clássica do terceiro milénio”, proclama a propósito, eufórico, o chefe de redacção da revista francesa Rock & Folk, Philippe Manoeuvre. Se acrescentarmos projectos como os do grupo Music Box, que em princípios de Março apresentaram em Lisboa a “reconstrução” dos espectáculos de Selling England by the Pound e Fox Trot dos Genesis, fase 1, com Peter Gabriel, é caso então para dizer que a pop tem já não só a sua “música clássica” como também a sua “música antiga”.

O que é pois mais de sublinhar nesta insólita tendência de “re-uniões” ao longo de 2007 é a coexistência no campo do pop/rock de ciclos e tempos muitos diversos, dos mais efémeros aos mais longos, de facto mesmo constitutivos de um património.
E se assim é em termos patrimoniais, não menos certo é então que o acervo musical da cultura pop já não se lhe está estritamente circunscrito, que irradiou também. Por exemplo, no ano lectivo passado, cinco trechos de Jimmi Hendrix, os cinco mais emblemáticos, Purple Haze, All Along the Watchtower, Hey Joe, Voodoo Child e If 6 was 9, foram inscritos na prova facultativa de música do “baccalauréat” (o exame final do secundário) em França.

Numa outra lógica, podia-se ler no programa de um dos mais importantes festivais de música contemporânea, o Musica de Estrasburgo, a propósito de Ligeti, um texto de Pierre Michel nestes termos: “À escuta do ‘Requiem’ (1966) ou do “Concerto de Câmara’(1971), não posso deixar de pensar no Quarteto nº. 4 de Bartók, no Voodo Child de Jimi Hendrix, no My Favorite Things de John Coltrane. Vejo a mesma necessidade interior, a potência directa do acto de criação potente, mesmo violenta nalguns momentos”. E não se chama até Rock – Homenagem a Ligeti uma bela obra de Nuno Côrte-Real, que aliás poderá ser de novo ouvida em concerto na Culturgest, no próximo dia 13?

Sim, o pop/rock constituiu um património próprio, e alguns dos seus elementos são parte da diversidade genérica do património musical actual. Não menos há a notar, todavia, que a “constituição” desta específica tradição e desta suposta outra e nova “música clássica”, sendo aquela que mais permanece estruturalmente ligada às indústrias culturais de massas e às plataformas técnicas, também mais arreda do discurso público e mediático as elaborações, da área erudita ou do jazz, que em termos da contemporaneidade musical são ainda das que mais ousam rasgar respectivas.