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DERIVAS 2006 – 2008

A Ópera e os seus fantasmas

26 de Fevereiro de 2007 – por Augusto M. Seabra

Ao princípio foi o Orfeo.

A 23 de Fevereiro de 1607, véspera de Carnaval, Carlo Magni escrevia de Mântua a seu irmão Giovanni, representante desse ducado em Roma: “Amanhã Sua Alteza o príncipe fará recitar uma comédia que será curiosa no sentido em que os interlocutores devem recitar em música”. O duque Vicente de Gonzaga fez mesmo imprimir o libreto a fim de que cada espectador pudesse seguir a acção – “La Favola d’Orfeo rappresentata in musica il Carnevale dell’ano MDCVII nell’Accademia degli Invaghiti di Mantova, sotto il felice auspici del Serenissimo Signor Duca suo benignissimo protettore”.

Só marginalmente, e mais na estrita perspectiva musicólogica que em rigor na musical, se assinalará que La Favola d’Orfeo de Claudio Monteverdi, uma das seminais obras da cultura europeia, tinha precedentes nas inovações monódicas da Camerata Bardi florentina, e nomeadamente da Euridice de Peri, representada em 1600. O que o génio ímpar de Monteverdi – um compositor moderno como poucos alguma vez o foram – trouxe ao novo stile rappresentativo foi uma teatralidade, pela qual se irá fazer a passagem do maneirismo, a que o Orfeo ainda pertence, ao barroco que anuncia. Com o Orfeo de Monteverdi, a 24 de Fevereiro de 1607, desponta esse género axial da estética e da mundivência barrocas, esse híbrido ou síntese, monstruosa, mirífica e culminante, conforme se entender, que é a ópera, simplesmente a obra. Assim começou num Carnaval, tempo de máscaras, com a descida de Orfeu aos infernos, por amor de Eurídice, com Orfeu perdendo Eurídice por desejo de Eurídice.

Ao princípio é Orfeu.

Sobre O olhar de Orfeu, essa falta fundadora, escreveu Maurice Blanchot páginas admiráveis: “Quando Orfeu desce para Eurídice a arte é o poder pelo qual se abre a noite. A noite, pela força da arte, acolhe-o, torna-se a intimidade acolhedora, a “entente” e o acorde da primeira noite [a Liebesnacht do Tristão e Isolda?]. Mas é para Eurídice que Orfeu desceu; Eurídice é, para ele, o extremo que a arte pode atingir, ela é, sobre um nome que a dissimula e sob um véu que a cobre, o ponto profundamente obscuro para o qual a arte, o desejo, a morte, a noite, parecem tender. (...) Olhando para Eurídice, Orfeu arruína a obra, que imediatamente se desfaz, e Eurídice regressa a sombra. (..) O erro de Orfeu parece então estar no desejo que o leva a ver e possuir Eurídice, ele que tem como único destino cantá-la. Ele não é Orfeu senão no canto(...) Sim, é verdade: Orfeu tem poder sobre Eurídice apenas no canto, mas também no canto Eurídice já está perdida (...) O olhar de Orfeu é o dom último de Orfeu à obra”.

O texto de Blanchot intitula-se L’espace littéraire, mas esse “extremo que a arte pode atingir” fê-lo convocar Orfeu, cantado porque pela desmesura do desejo perdeu o objecto do desejo que cantava e perdeu o seu próprio canto, Orfeu que pela falta, pelo olhar, fez dom da obradell’opera.

“É impossível não atender a que, em larga medida, o edifício da civilização repousa sobre o princípio da renúncia às pulsões instintivas e a que ela postula precisamente a não-satisfação (repressão, recalcamento ou qualquer outro mecanismo) de poderosos instintos. Esta ‘renúncia cultural’ rege o vasto domínio das relações sociais entre humanos, e sabemos já que nela reside a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações tiveram de lutar”, escreveu em Mal-estar na Civilização um certo Dr. Siegmund Freud, que não consta que frequentasse ópera ou teatros, antes pelo contrário, embora bem conhecesse os estudos sobre a histeria de Charcot – e com ele se tivesse mesmo formado –, as sessões de hipnose do neurologista no hospital de Salpêtrière sendo uma espécie de cena teatral.

E todavia, na continuidade da psicanálise, não poucos sublinharam o estado primordial que é o da voz (“A voz mais que a palavra coloca a questão da origem; nisso ela não é se não som” – Guy Rosolato), qual Eco e Narciso (a construção da identidade, o reconhecimento próprio do sujeito pela voz), o seu estatuto de objecto pulsional, do qual a forma última de elaboração estética, de regulação social e também, as mais de vezes, de permanência na esfera do poder, é a ópera.

De há muito me acompanha, até por se tratar de uma obra fundamental sobre a economia dos teatros de ópera, um estudo de Bernard Bovier-Lapierre, de título lapidar:
Opéra – Faut-il fermer les maisons du plaisir?

Sim, os teatros de ópera podem, infelizmente, ser por rotina social casas muito bem comportadas (que saudades de pateadas e de plateias divididas no São Carlos e no Coliseu!). Mas atenção que o que se lá passa e representa pode ser perigoso!

A ópera é matéria eminentemente de gozo e o desejo com todas assuas conotações sexuais é o seu constante fantasma; “Madamina, il catalogo è questo...”, Don Giovanni, Tristão e Isolda, Carmen, Salomé, Lulu ou Poppea, Agrippina, “Quinquin” e “Bichette” no Cavaleiro da Rosa (mas já se deram bem conta, uma cena que se abre com a devassa da noite libidinal da experiente “Bichette” e do jovem “Quinquin”?)......mil e tre.

O senhor Bertolt Brecht achava que a ópera era “culinária”. Adorno escreveu que “sobre nenhuma outra arte são mais pertinente as considerações de Benjamin sobre o declínio da aura”, a “vanguarda” estipulou durante décadas a morte da ópera e o então seu profeta, Pierre Boulez, proclamou mesmo que era preciso “incendiar os teatros de ópera”.

E eis que sobre o fantasma da morte algo sucedeu. Lembro-me, foi há cerca de 30 anos. Lembro-me ainda de uma capa do Nouvel Observateur“Opéra, la nouvelle follie”. Em 1980, na conclusão do seu balanço Le théâtre depuis 1968, escrevia a crítica do Le Monde Colette Godard: “A moda da ópera e a moda disco são os reflexos contrários de um mesmo fenómeno, o mesmo desejo irresistível [sempre o desejo] de selar os séculos de razão sob as vertigens de luzes que fazem a noite prodigiosamente negra, de dar à dor acentos sublimes ou ensurdecedores, de dissolução no cerimonial convulsivo do artificial e do excesso. De um lado as divindades, de outro os ídolos”.

Dez anos volvidos, um outro crítico teatral, e dos mais importantes e influentes, Bernard Dort, já escrevia, a propósito da ópera, “Le théâtre par excelence”. Constatação feita: longe da fossilização que houvera durante décadas, a ópera, depois de Wieland Wagner, Luchino Visconti e Giorgio Strehler, era espaço para as mais elaboradas experiências de teatro. Eu sei, tive a possibilidade, o privilégio e o prazer de lhe ir vendo os trabalhos, a Patrice Chéreau, Luca Ronconi, Peter Stein, Bob Wilson, Peter Sellars...

E depois de tanto se ter proclamado a morte da ópera, difícil vai sendo saber de um compositor de relevo que não tenha escrito uma ópera, esteja em vias disso ou a tal aspire. Talvez, se não Adorno, o próprio Walter Benjamin pudesse afinal ter constatado, não fosse o seu destino trágico, que a ópera, longe de dissipar a sua aura, afinal resiste, anacrónica, na aceleração vertiginosa da modernidade. E talvez seja disso também sinal que a experiência trágica de Benjamin seja já matéria de ópera, Shadowtimes de Brian Ferneyhough, a Culturgest anunciando a encomenda de W a José Júlio Lopes.